Em 1986, nas quartas de final da Copa do Mundo do México, Diego Armando Maradona protagonizou um dos lances mais polêmicos na história do futebol. Na partida contra a Inglaterra, vencida por 2 a 1 pela Argentina, o jogador marcou os dois gols de sua equipe. O primeiro, irregular, foi validado pela arbitragem e entrou para a história do esporte como “a mão de Deus”.
O episódio dá título ao mais recente filme do cineasta italiano Paolo Sorrentino, A Mão de Deus, que neste ano disputa o Oscar de melhor filme internacional. O filme pode ser visto no canal de streaming Netflix, que o coproduziu.
Sorrentino, que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2014 por A Grande Beleza, não conta a história do gol, tampouco de seu autor, porém Maradona “paira” sobre toda a trama de A Mão de Deus, vencedor do Grande Prêmio do Júri (Leão de Prata) no Festival de Veneza em 2021.
No belíssimo plano inicial do filme, em uma tomada área sobre o mar, a câmera se aproxima de Nápoles, cidade do sul da Itália onde Maradona viveria momentos de glória em sua carreira, entre 1984 e 1991, quando foi a grande estrela do Napoli, cuja torcida até hoje venera o atacante como se fosse uma espécie de santo.
Sorrentino povoa o mundo de seu protagonista com seus habituais personagens excêntricos, quando não bizarros, alguns a um passo do universo felliniano, uma das referências mais fortes.
No centro da narrativa de A Mão de Deus está Fabietto Schisa (o ótimo Felippo Scotti), um adolescente, fanático torcedor do Napoli, assim como boa parte de sua tumultuada família. Os pais, Saverio (Toni Servillo, de A Grande Beleza) e Maria (Tereza Saponengello), vivem uma relação de altos e baixos por conta de uma relação extraconjugal que o patriarca vive há anos com outra mulher.
A irmã de Maria, a bela Patrizia (Luisa Ranieri), por quem Fabietto nutre uma atração platônica, também enfrenta problemas conjugais: ela e o marido, Franco (Massimiliano Gallo), tentam há anos, sem sucesso, ter um filho.
Na surreal sequência de abertura de A Mão de Deus, Sorrentino mostra Patrizia sendo abordada, em um ponto de ônibus no centro de Nápoles, por São Januário, que chega em um elegante carro antigo com motorista, e lhe propõe um pacto para que ela possa, enfim, engravidar. Ela deve acompanhá-lo até um luxuoso palazzo, onde deverá beijar uma criatura diminuta, encapuçada, que ele chama de “mongezinho”. Ela vai, cumpre o ritual, e, ao chegar em casa, apanha do marido, que suspeita que ela esteja se prostituindo. A partir dessa situação, somos apresentados a Fabietto e seus pais, que vão, de moto, numa das mais emblemáticas cenas do filme, socorrê-la.
A trama de A Mão de Deus inicia às vésperas da contratação de Maradona pelo Napoli e se estende até após a Copa de 1986. Nesse período, Fabietto, que seria uma espécie de alter ego de Sorrentino, também napolitano, vive as dores e angústias da adolescência, que vão do desejo inconfesso pela tia à ansiedade de testemunhar a relação entre seus pais desmoronando, até culminar em uma tragédia, sobre a qual nada vamos falar aqui.
Sorrentino povoa o mundo de seu protagonista com seus habituais personagens excêntricos, quando não bizarros, alguns a um passo do universo felliniano, uma das referências mais fortes (e assumidas) no cinema do diretor, que usa uma lente de aumento para criar sua geografia humana. Além do irmão, Marchino (Marlon Joubert), que sonha em ser ator de cinema, há tias obesas e histriônicas, um tio obcecado por Maradona, primos barulhentos e uma vizinha baronesa decadente, entre outros.
Em meio a tudo isso, Fabietto tenta encontrar seu lugar no mundo. Sonha sair de Nápoles, tornar-se diretor, por ver no cinema a possibilidade de uma fuga de sua realidade. É lindo o seu encontro, já no ato final do longa, com um cineasta napolitano famoso, que o questiona sobre o que o move e Fabietto fala sobre a dor que carrega dentro de si.
Barroco, Sorrentino é tudo menos um realizador minimalista. Seus filmes são embotados de signos e sentidos tanto estéticos quanto dramáticos. São obras que demandam atenção, de olhos e ouvidos. A Mão de Deus, em comparação a A Grande Beleza, é, ao meu ver, mais orgânico, menos discursivo, racional, e bem mais sensível. E a forma como se apropria dos anos napolitanos de Maradona como pano de fundo histórico é genial. Um baita filme.
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