No prólogo da comédia Minha Obra-Prima, um de seus personagens centrais, o marchand e galerista Arturo Silva (Guillermo Francella) declara seu amor por Buenos Aires sem poupá-la de comentários ferinos sobre a cidade. Ao dizer que a capital argentina é, talvez, uma das metrópoles mais fascinantes e surpreendentes do mundo, que não fica atrás de Nova York, Paris ou Roma, o narrador reconhece que não é fácil enfrenta-la: seu trânsito é caótico, os contrastes sociais, tipicamente latino-americanos, revoltantes, e muitos de seus habitantes podem ser insanos. E é em torno de um desses portenhos “alucinados” que se desenvolve a trama do mais recente longa-metragem do cineasta Gastón Duprat, o mesmo do premiado O Cidadão Ilustre.
Irônico comentário sobre o mundo das artes em Buenos Aires, retratado como uma verdadeira fogueira de vaidades, Minha Obra-Prima tem como protagonista o pintor Renzo Nervi (Luis Brandoni), que no passado viveu dias de glória, mas já não consegue atrair o interesse de outrora. Sua última exposição, em cartaz na galeria de Arturo, é um fracasso: não conseguiu vender uma tela sequer. Viúvo, mantém um relacionamento tumultuado com uma jovem aluna, e, performaticamente arrogante, finge não se importar com a decadência de sua carreira: afirma fazer “algo inútil que não interessa a ninguém”.
Grande sucesso na Argentina, tem a cara de Buenos Aires, como seu prólogo anuncia, e seu êxito se deve às grandes atuações de Brandoni e Francella, ambos excelentes, e à habilidade de Duprat.
Por sua vez, Arturo encarna uma outra faceta desse microcosmo do mundo artístico portenho. Para atrair a crítica, abre espaço em sua galeria a artistas contemporâneos que mal compreende e tenta, a sua maneira, provar que não está ultrapassado.
Em última instância, Minha Obra-Prima tem como um de seus temas centrais o envelhecimento e o risco, senão o medo, da obsolescência. Por isso, Arturo mantém com Renzo uma relação de amor e ódio.
Ao mesmo tempo que se julga responsável pela celebridade do artista, com o qual trabalha há décadas, nele também enxerga um incômodo retrato do próprio declínio.
Grande sucesso na Argentina, o filme tem a cara de Buenos Aires, como seu prólogo anuncia, e seu êxito se deve às grandes atuações de Brandoni e Francella, ambos excelentes, e à habilidade de Duprat, como já havia provado em O Cidadão Ilustre, de lançar um olhar ao mesmo tempo afetuoso e cáustico sobre a Argentina contemporânea em uma narrativa surpreendente. Não se sabe ao certo que rumo a trama tomará quando Renzo sofre um grave acidente e é internado em um hospital, tendo apenas Arturo para cuidar dele e de seus interesses.
Ainda que em tom de sutil paródia, Minha Obra-Prima faz uma interessante provocação sobre quão voláteis podem ser os discursos associados ao mundo das artes. O artista hoje incensado pela crítica pode, conforme a mudança de ventos, ser considerado ultrapassado ou decadente amanhã. Estar vivo ou morto, ou ter seu nome relacionado a algum fato de grande repercussão, também impacta – e muito – a percepção que se tem de sua obra, que, por vezes, torna-se mero detalhe na era da “palavra pintada”, como diz o título do célebre e polêmico livro de Tom Wolfe sobre os bastidores da arte contemporânea.
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