Há 25 anos, o psicanalista carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza estreou na ficção com O Silêncio da Chuva, obra que lhe deu o prêmio Jabuti, na categoria de romance. O livro apresentou ao mundo o investigador Espinosa, morador do Bairro Peixoto, enclave formado por algumas poucas ruas no coração de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro.
O personagem, protagonista de dez outros romances do escritor, falecido em 2020, é um policial atípico. Apaixonado por livros, ele é um rato de sebos, que alimentam com regularidade sua enorme biblioteca sem estantes – os volumes, organizados em fileiras que vão se empilhando, formam paredões de papel encadernado no seu apartamento, onde cultiva uma existência frugal e solitária. Para a crítica, Garcia-Roza seria um legítimo representante da literatura noir em uma versão tropical.
Chega hoje aos cinemas brasileiros a versão cinematográfica de O Silêncio da Chuva, sob a direção de Daniel Filho (dos sucessos Se Eu Fosse Você e A Partilha). A trama foi deslocada dos anos 1990 para os dias atuais, e isso não é um problema. O que deve causar bastante estranhamento entre os leitores de Garcia-Roza é o fato de a adaptação, assumidamente “livre” conforme os créditos finais do longa-metragem, ter transfigurado Espinosa, interpretado pelo ótimo Lázaro Ramos. Não há quase nenhum traço do personagem original.
Ainda que seja introspectivo, e fale um português corretíssimo, características do protagonista nos romances, publicados entre 1996 e 2019, o Espinosa do filme perdeu sua geografia, seu cotidiano metódico e, por fim, sua complexidade, que o diferencia de outros detetives similares. Nas páginas de Garcia-Roza, ele está sempre garimpando as livrarias, faz longas caminhadas por Copacabana, compra quibes e esfirras em um tradicional restaurante árabe na Galeria Menescal, e vive uma rotina disciplinada que não apenas o explica, mas, também, acaba dando todo o charme das narrativas.
Sem nada disso, o roteiro de O Silêncio da Chuva busca se sustentar na trama policial, no caso investigado por Espinosa e pela também detetive Daia (Thalita Carauta, da série Segunda Chamada). Isso, de certa forma, esvazia a potência da obra, ainda que a dinâmica entre os dois policiais renda bons momentos, muitos deles cômicos.
O enredo tem como ponto de partida o assassinato do executivo Ricardo (Guilherme Fontes), encontrado morto a tiros no banco de seu carro sem maiores suspeitas. Espinosa e Daia são encarregados do caso e logo começam a investigar as pessoas mais próximas da vítima, mais especificamente a esposa, Beatriz (Cláudia Abreu) e a secretária, Rose (Mayana Neiva), personagens-chave no filme e no livro. Quando muitos dos envolvidos no caso começam a sumir misteriosamente, a situação toma rumos inesperados.
Embora o roteiro de O Silêncio da Chuva seja correto, no sentido de construir a trama policial de forma envolvente, com bem-vindas surpresas, muitas já presentes no romance de Garcia-Roza, há algo faltando e, para mim, é Espinosa.
Embora o roteiro de O Silêncio da Chuva seja correto, no sentido de construir a trama policial de forma envolvente, com bem-vindas surpresas, muitas já presentes no romance de Garcia-Roza, há algo faltando e, para mim, é Espinosa. Ainda que Lázaro Ramos faça das tripas coração, o protagonista, tão rico no livro, é um fiapo de personagem no filme. Não conseguimos entender seus métodos de investigação, tampouco as motivações emocionais que o fazem ser como é, um sujeito mais tímido, introspectivo e sensível do que se espera de um tira. É Daia (no livro, um homem), espécie de grilo falante do investigador, quem nos permite entender um pouco melhor o personagem – aliás, Thalita Carauta, uma atriz que vai da comédia ao drama com um olhar, é um dos trunfos do longa.
O audiovisual brasileiro, assim, ainda fica devendo uma adaptação à altura da envergadura da obra de Garcia-Roza, que, além de O Silêncio da Chuva, já rendeu dois outros longas – Achados e Perdidos (2005), de José Joffily, que simplesmente cortou Espinosa da trama; e Berenice Procura (2017), único romance do autor carioca que não traz o policial bibliófilo entre seus personagens. Há, também, a série televisiva Romance Policial: Espinosa (2015), que teve apenas uma temporada porque o ator Domingos Montagner, que a protagonizava como o delegado, morreu em 2016, quando gravava a novela Velho Chico.