Você já assistiu a Pantera Negra no cinema? Não? Então, vá correndo. Mas não curte filmes de super-heróis, superproduções pirotécnicas, cheias de cenas de ação, explosões, pancadaria e efeitos visuais, né? Não faz mal. Vá mesmo assim. Tenho quase certeza de que não irá se arrepender. Porque o belo (isso mesmo, bonito, literalmente, de encher os olhos, emocionante) longa-metragem de Ryan Coogler transcende o gênero ao qual pertence. Não apenas porque quebra paradigmas da indústria do entretenimento, levando milhões de espectadores ao redor do mundo para ver uma aventura dirigida e protagonizada por negros, em uma trama com foco na cultura africana. Mas porque é muito bom como cinema mesmo, inovando, subvertendo, fazendo pensar.
Coogler não é um cineasta que se tornou conhecido como diretor de filmes de ação, mas por seu olhar sensível em direção da realidade dos afro-americanos: são dele os premiados e bem-sucedidos Fruitvale Station: a Última Parada (2013) e Creed: Nascido para Lutar (2015). A solidez dramática e a originalidade desses filmes ajudam a compreender por que Pantera Negra, saído dos quadrinhos de Stan Lee, é tão superior a grande parte dos longas de super-heróis, comparável, talvez, à trilogia Batman de Christopher Nolan. A sua relevância, no entanto, vai em outra direção.
Mais até do que o personagem central T’Challa/Pantera Negra (Chadwick Boseman), príncipe herdeiro do trono de um país africano fictício no coração do continente negro, precisamos falar de sua terra, ela, sim, a verdadeira protagonista do filme: Wakanda. Uma espécie de El Dorado, que aparenta ser uma nação subdesenvolvida para o resto do planeta, mas guarda um segredo mantido a sete chaves: há muitas e muitas gerações, em tempos imemoriais, ela foi contemplada com uma substância única, poderosíssima, capaz de lhe proporcionar um desenvolvimento tecnológico e autossustentável sem paralelos no mundo. O que não significa que, ao tornar-se rei, T’Challa não encontrará resistências dentro e fora de seu território.
Coogler não é um cineasta que se tornou conhecido como diretor de filmes de ação, mas por seu olhar sensível em direção da realidade dos afro-americanos.
Com um roteiro afiado, que sabe equilibrar drama, ação, tensão e comédia, os 135 minutos de Pantera Negra fluem com elegância, numa trama muito bem amarrada. Direção de arte, figurinos deslumbrantes e trilha sonora recorrem a um interessante conceito de pan-africanismo (várias Áfricas estão representadas) que vai do mais tradicional ao high-tech; do tribal ao hip-hop.
Os personagens, muitos, são quase todos bem delineados. T’Challa é um herói ao mesmo tempo bravo, de bom caráter e hesitante, inseguro, e isso é bom, porque o humaniza, o torna tridimensional. Ele treme diante da mulher de sua vida, a guerreira Danai (a excelente Lupita Nyong’o, de 12 Anos de Escravidão), que ele admite ser mais forte do que ele em inúmeros aspectos. Assim como muitas das mulheres de Wakanda: o cérebro tecnológico do país é a irmã mais nova do rei, a adorável Shuri (Letitia Wright), uma menina genial. A guerreira careca Okeye (Danai Gurira) é sensacional, uma força da natureza em cena.
Outro ponto muito forte de Pantera Negra é o vilão Erik Killmonger (Michael B. Jordan, protagonista de todos os filmes de Coogler), cujas motivações de enfrentamento do herói são bastante legítimas e dramaticamente justificáveis. Isso é um caso muito raro em filmes do gênero, nos quais predomina o maniqueísmo. Mais do que vilanesco, ele é trágico, movido por uma dor profunda, e também corroído pela diáspora africana, que permeia toda a trama do vibrante filme de Coogler. Há personagens brancos, como um agente da CIA, vivido por Martin Freeman (de O Hobbit), que é uma figura ambígua, talvez demais, mas esse é um erro menor do roteiro.
De volta ao começo, Pantera Negra poderá, talvez, se tornar o primeiro longa-metragem de super-heróis indicado ao Oscar de melhor filme em 2019. Ou não. Logan (do universo X-Men) disputa neste ano a estatueta de melhor roteiro adaptado pela primeira vez na história. Se acontecer, será merecida a indicação, porque é um daqueles filmes que será lembrado daqui a 20, 30 anos. Pelas crianças e adolescentes negros de 2018 que agora têm um lugar mítico chamado Wakanda.
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