Há cinco, no máximo dez anos, transexuais estavam à margem dos discursos midiáticos. Sempre existiram, mas a força autoritária da “moral e dos bons costumes” os condenavam ao mundo das sombras, como se fossem criaturas indignas de serem incorporadas pelos discursos da cultura mainstream. A passos lentos, é bem verdade, mas hoje bem mais visíveis, ainda que na maior parte das vezes incompreendidos, começam a ganhar luz, e, por vezes, relativo protagonismo. Nesse contexto, Uma Mulher Fantástica, ótimo filme chileno em cartaz desde a semana passada, é um chute na porta.
Vencedor do Urso de Prata de melhor roteiro no último Festival de Berlim, o longa-metragem de Sebastián Lelio (do premiado Glória) não foge à tradição latino-americana do melodrama, gênero que pega firme em vastas emoções e pensamentos imperfeitos, quase sempre um tom acima, para falar de temas muito urgentes. É uma tradição que está no DNA dessa cultura transcontinental e cai aqui como uma luva.
Orlando (Francisco Reyes, ótimo) é um cidadão acima de qualquer suspeita que vive um relação triangular. É casado e vive uma história de amor com uma mulher bem mais jovem, Marina. Durante o dia, ela trabalha como garçonete e, à noite, completa o orçamento cantando em boates. Cabe à madrugada embalar a paixão do casal.
O detalhe que faz toda a diferença é que Marina é transexual, assim como a atriz Daniela Vega, que a interpreta com, ao mesmo tempo, fúria e sutileza. Em uma reviravolta melodramática exemplar, Orlando, depois de uma noite de arrebatamentos nos braços de sua amada, morre. É o início do processo de imolação de Marina, que se recusa a permanecer na obscuridade e enfrenta uma via-crúcis para viver seu luto.
O detalhe que faz toda a diferença é que Marina é transexual, assim como a atriz Daniela Vega, que interpreta com, ao mesmo tempo, fúria e sutileza.
Por sua inerente condição de marginalidade, ela se torna alvo imediato de suspeitas. Não tem direito de ser viúva, mas o papel de assassina lhe cai bem, ao olhar de um Estado policialesco, que reproduz os valores de uma sociedade como a do Chile, onde a ditadura, embora finda, ainda ecoa nos corações e mentes de muitos. A família oficial reclama para si o defunto: velório, enterro, coroas de flores, missa. O direito de viver a dor em público não cabe a uma criatura “abjeta” com Marina. Ela, porém, não se aquieta e vai à luta, sem pedir licença. Sofre sem se vitimizar e parte para o ataque: deseja expor a dor de sua perda à luz. Reclama dignidade.
Sem escapar das convenções melodramáticas, optando por abraçá-las com bravura, Lelio encontra na fotografia, conduzida belamente por Benjamín Echazarreta, um instrumento artístico valioso. A câmera usa e abusa de closes frontais do rosto de Marina, que revela-se uma paisagem complexa, riquíssima, assim como as ruas de Santiago por onde a personagem transita em seu martírio a céu aberto. A mão do realizador é firme, e opta pela densidade, embora abrace sem medo o drama e o suspense, que envolvem e arrebatam o espectador.
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