Nos derradeiros anos do século 19, a França viu-se cindida diante de um caso judicial explosivo: o capitão do Exército Alfred Dreyfus, acusado de fornecer informações militares franceses para a Alemanha, foi sentenciado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, território da Guiana Francesa, na costa da América do Sul. Judeu, ele foi vítima de um complô antissemita envolvendo a Justiça e as Forças Armadas, que nele encontraram um bode expiatório sob medida. O militar só seria inocentado após anos de cárcere.
O Oficial e o Espião, longa-metragem sobre o Caso Dreyfus (1894-1906), vencedor do Grande Prêmio no Festival de Veneza e agora em cartaz nos cinemas brasileiros, transforma a França mais uma vez em um tribunal popular. Não por conta do enredo do filme, mas da biografia bastante polêmica de seu diretor, o cineasta franco-polonês Roman Polanski, hoje com 86 anos.
Autor de clássicos do cinema contemporâneo, como O Bebê de Rosemary e Chinatown, Polanski, um mestre da sétima arte, também é considerado, por muitos, um criminoso nunca punido como deveria. Há 43 anos, foi condenado pela Justiça norte-americana pelo estupro de Samantha Geimer, então uma adolescente de 13 anos. Após cumprir parte da pena, fugiu dos Estados Unidos para a França quando o juiz encarregado do caso decidiu aumentar sua pena. Há pouco tempo, Valentine Monnier, fotógrafa e modelo, acusou o diretor de tê-la estuprado quando ela tinha 18 anos e outras supostas vítimas também vieram a público com histórias semelhantes, todas negadas veementemente por Polanski.
A controvérsia em torno de O Oficial e o Espião entrou em ebulição quando o filme foi indicado ao César, o “Oscar” francês, em 12 categorias, desencadeando uma crise na Academia Francesa de Cinema, organizadora da premiação, e levou seu corpo diretivo a se demitir. Na recente cerimônia de entrega dos troféus, em Paris, militantes feministas cercaram a Salle Pleyel, onde ocorre a festa, para protestar. Ainda assim, a produção levou três prêmios: os de melhor figurino, roteiro e direção, os dois últimos para Polanski. Parte da plateia ficou indignada. A atriz Adèle Haenel, protagonista do filme Retrato de uma Jovem em Chamas, ao ouvir que Polanski havia vencido o prêmio de melhor direção, levantou-se e deixou a cerimônia em sinal de protesto, seguida de outras pessoas. Vale dizer aqui que ninguém da equipe de O Oficial e o Espião compareceu à Salle Pleyel, prevendo a saia justa.
Mas chegamos, aqui, a uma questão crucial? A despeito de toda controvérsia ao seu redor, O Oficial e o Espião merece ou não ser visto? Minha resposta é sim. Se a qualidade da filmografia de Polanski não pode e não deve ser usada para redimi-lo, ou atenuar a gravidade de seus erros, desmerecer a obra por conta da biografia do diretor também é um erro, ainda que seja quase inevitável enxergar nesse seu novo longa-metragem uma tentativa de estabelecer um certo paralelo de injustiçamento entre a figura de Dreyfus e Polanski.
A despeito de toda controvérsia ao seu redor, O Oficial e o Espião merece ou não ser visto? Minha resposta é sim.
O filme abre com uma cena que de certa forma sintetiza muito do que vai ser discutido: no amplo pátio de uma academia militar, em Paris, Dreyfus (Louis Garrel, de Canções de Amor) é degradado diante de outros militares (seus iguais?!) e do público, que assiste a tudo à distância. como a um espetáculo, o que de certa forma é. Somos, como espectadores, essas pessoas. O oficial condenado clama sua inocência aos gritos, mas de nada adianta porque seu destino está selado. Ninguém quer ouvi-lo. E nós?
O interessante é que Dreyfus, apesar de estar no centro da narrativa, marca mais pela ausência do que pela presença. Não é o protagonista de O Oficial e o Espião. O roteiro é construído em torno do oficial Georges Picquart (um excelente Jean Dujardin, vencedor do Oscar por O Artista), que embora seja antissemita confesso e tenha participado diretamente da condenação de Dreyfus, terá papel fundamental na investigação de documentos secretos que, anos mais tarde, levará à comprovação da inocência do militar judeu.
Com uma excepcional reconstituição de época e uma direção firme, porém econômica nas emoções e precisa na construção narrativa, Polanski resiste à tentação do maniqueísmo melodramático. Ele é cirúrgico ao conduzir o espectador por um labirinto burocrático, judicial e político, que tenta de todas as formas reafirmar a culpa de Dreyfus, nem que para isso tenha de desmoralizar Picquart, que de figura ascendente no Exército francês cai em desgraça por questionar métodos e valores da corporação e da Justiça francesa. O roteiro não poupa ninguém, tampouco a opinião pública, ou parte expressiva dela, que assina embaixo do racismo e da arbitrariedade, em nome de um discurso nacionalista e patriótico que muito nos faz pensar no que anda ocorrendo mundo afora, inclusive em terras brasileiras, nos dias atuais
Com contraponto à toda essa obscuridade, Polanski exalta obstinação ética de Picquart, um homem público cônscio de seus deveres com o país e a verdade, e a importância do engajamento do escritor e intelectual Émile Zola à causa da defesa da inocência de Dreyfus. É dele o histórico manifesto “J’Accuse” (Eu Acuso), publicado na capa do jornal L’Aurore em 13 de janeiro de 1898, que denuncia todos os envolvidos na farsa que levou à condenação do oficial.
O Oficial e o Espião é um grande filme, uma aula de História e também de cinema. E isso não há como negar. Separar o homem Polanski do diretor, e de sua obra, portanto, se faz necessário, ainda que seja tarefa quase impossível. É uma obra que nos confronta com o céu e o inferno de seu criador.
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