Não é fácil contar uma história de extrema crueldade sem dela se tornar refém. O Quarto de Jack, notável longa-metragem do cineasta norte-americano Lenny Abrahamson (da intrigante comédia dramática Frank), vence esse desafio com louvor, porque consegue, ao mesmo tempo, levar para tela tanto o horrível quanto o sublime, sem cair no sensacionalismo (ou na ingenuidade), ou necessariamente dissociá-los, os colocando em territórios opostos. É uma opção corajosa.
Baseado no livro de Emma Donoghue (também autora do roteiro), O Quarto de Jack, um dos oito indicados ao Oscar de melhor filme, e, para mim, um dos melhores entre os concorrentes à estatueta, é narrado da perspectiva do personagem-título, vivido pelo incrível Jacob Trembley.
Jack é um garoto que chega aos 5 anos sem jamais ter posto os pés fora de um cômodo que é o seu mundo, sem saber que é, na verdade, seu cativeiro, uma jaula. Ele não tem noção de sua condição de prisioneiro desde o nascimento: sua mãe foi sequestrada aos 17 e mantida presa, e sucessivamente abusada sexualmente pelo seu captor, “Old Nick”, que a engravidou.
Para desviar da insanidade (se é que isso é possível), Ma, como o garoto chama a mãe, transforma o quarto, na verdade um barracão construído nos fundos da casa de Old Nick, em um espaço mágico. Não à toa, um dos livros que ela lê para a criança é Alice no País das Maravilhas, clássico de Lewis Carroll: ela tenta fazer do cativeiro uma dimensão paralela, de certa forma onírica, para torná-la mais suportável, até que surja a oportunidade para a fuga. O mundo real está ali fora, mas também do outro lado da galáxia.
Na primeira parte do filme, que se passa inteiramente no interior do quarto, Abrahamson justifica sua indicação ao Oscar de melhor direção, usando sua câmera para alternar sensações opostas de claustrofobia e ludicidade. Faz de um espaço mínimo um universo, que nasce da perspectiva de Jack que desconhece qualquer outra realidade. É seu lar, e também uma geografia povoada por signos, com os quais interage, dialoga. E nós conseguimos acreditar nisso.
Na primeira parte do filme, que se passa inteiramente no interior do quarto, Abrahamson justifica sua indicação ao Oscar de melhor direção.
Igualmente marcante é o trabalho de Brie Larson (de Temporário 12), favorita ao Oscar de melhor atriz. Sua atuação vai do extremo amor pelo menino ao desespero absoluto, à depressão profunda, sem resvalar no excesso. Muito pelo contrário: seu desempenho é marcado pela contenção, e de alguma maneira personifica todo o horror da história sem dele se tornar refém.
É um dos grandes achados de um pequeno grande filme, que vai beber de casos semelhantes da vida real, mas nunca tem o paladar de “um filme baseado em fatos reais”, com pretensões de realismo mais rasas. Investe na subjetividade, e não no sensacionalismo, tecendo, inclusive, um comentário bastante corrosivo do questionável papel da imprensa em casos semelhantes.
Desde já, O Quarto de Jack é um dos melhores filmes de 2016.
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