A obra de Stephen King costuma mostrar que o horror pode se esconder nos espaços banais do nosso cotidiano. Um hotel favorito para as férias de verão, uma adolescente retraída e uma burocrática máquina de lavanderia industrial se revelam seres perigosos nas palavras do autor. Assim, não é surpresa que os telefones celulares tenham sido alvos de suas tramas.
Lançado em 2006, o livro Celular foi originalmente pensado como uma homenagem aos filmes de zumbi. Há, inclusive, uma dedicatória a George Romero, parceiro de King em Creepshow – Show de Horrores (1982). Na narrativa, um grupo de pessoas tenta sobreviver a um apocalipse provocado por uma série de ligações telefônicas que transformaram os humanos em selvagens carniceiros.
No livro, King não é nada sutil na maneira como constrói seus alertas sobre como estamos nos transformando em zumbis ao não nos desconectarmos muito dos dispositivos móveis. Isso, em 2006.
A premissa, bastante elogiada pelos leitores do autor, rapidamente teve os direitos adquiridos para o cinema. Eli Roth foi um dos nomes cotados para a direção do projeto, que foi engavetado por anos. Eventualmente, Tod Williams, de Atividade Paranormal 2 (2010), acabou ocupando o cargo. A entrada de John Cusack e Samuel L. Jackson associou o longa-metragem à 1408 (2007), sucesso modesto da dirigido por Mikael Håfström.
O resultado dessa nova adaptação é ruim, mas nos dá oportunidade de fazer algumas considerações sobre o modo como o horror promove reflexões acerca do mundo em que vivemos. No livro, King não é nada sutil na maneira como constrói seus alertas sobre como estamos nos transformando em zumbis ao não nos desconectarmos muito dos dispositivos móveis. Isso, em 2006. Esse quadro foi expandido absurdamente desde então.
Nas telas, o personagem de Jackson discursa sobre como os celulares deformam o comportamento humano. Os phoners, seres que sofreram o impacto dessas misteriosas ligações, emulam o comportamento de pássaros, conectando-se por ondas magnéticas e telepáticas. Hoje, nos isolamos para manter contato com o que ocorre nos smartphones de forma semelhante. O impacto é até no visual: estudos já mostram que teremos problemas de coluna com mais facilidade por causa dos dispositivos móveis (leia mais).
Outra peculiaridade: Celular (2016) não é bem um filme de zumbi. Não aos moldes clássicos, pelo menos. De uma certa forma, está mais próximo de Invasores de Corpos (1978), Os Meninos (1976) e O Exército do Extermínio (1973). Isso desperta outros dilemas da trama, como a preservação da vida dessas novas criaturas.
Tradicionalmente, zumbis são corpos ambulantes. A escritora Mary Roach, no livro Curiosidade Mórbida – A ciência e a vida secreta dos cadáveres, explica que os médicos costumam pensar um morto como uma coisa, o que facilita necropsias e extrações de órgãos. O processo parece ser mesmo pelo qual passam os mortos-vivos nos filmes e séries de televisão, uma vez que os personagens vivos não se furtam em dar um tiro na cabeça da própria mãe depois que ela se transforma em um monstro esfomeado por vísceras.
Tanto no livro de King quanto no filme de Williams, um dos pontos centrais da trama é um dilema envolvendo um potencial genocídio de um grupo de phoners. Os personagens estão preocupados sobre a humanidade dos zumbis, que são violentos, desconectados do mundo real, mas vinculados a novos tipos de relações sociais. “Podemos reabilitá-los?”, questiona o personagem de Cusack em certo momento. A resposta à pergunta é estranha para o público. Especialmente porque está mal resolvida com o fim do longa-metragem, sensivelmente distinto do material original. De qualquer forma, parece uma reflexão sobre como não podemos fugir dos aparelhos celulares. Eles sempre nos alcançam, nos vencem e nos mostram que não dá para negar a conectividade.