Há um ano, eu estreava a coluna Espanto na Escotilha com um texto sobre A Noite dos Mortos-Vivos (1968), um dos meus filmes favoritos (leia aqui). A obra de George A. Romero pertence a um panteão de clássicos definitivos, responsáveis por mudar a maneira das pessoas consumirem o gênero de horror e o cinema, de um modo geral. Tamanha importância que atribuo à obra, achei que uma maneira de comemorar o primeiro aniversário deste espaço seria retomá-la para mais algumas considerações.
“Eles estão vindo te pegar, Bárbara”, diz Johnny à irmã. A sentença é pronunciada de um cemitério realista de uma cidade do interior dos Estados Unidos. A maneira como o personagem enuncia a frase nos dá a entender que dialoga com uma provocação de infância, provavelmente inspirada por filmes de monstros que via nas matinês com outras crianças.
Como reparou o jornalista Jason Zinoman, a brincadeira de Johnny não deixa de ser um comentário metalinguístico sobre o gênero de horror. Uma maneira de mostrar que Romero estava disposto a apresentar algo novo ao público. O vulto cambaleante apresentado ao fundo da cena seria um tipo novo de ameaça para os dois irmãos.
Em 1968, o argumento do filme era revolucionário. Afinal, há uma revolução maior do que negar a morte?
A Noite dos Mortos-Vivos fez escola. Hoje, os zumbis ocupam cadeiras nas mais variadas produções culturais (leia mais). O excesso até incomoda. Em 1968, no entanto, a ideia de mortos levantando para devorar os intestinos dos vivos era revolucionária. No documentário Birth of the Living Dead (2013), o próprio Romero admite que tinha o movimento da contracultura em mente quanto bolou o argumento. Há revolução maior do que negar a morte?
O público das primeiras exibições foi pego de surpresa com a violência gráfica da obra. Muitos distribuidores a rotularam como mais um filme de monstro e a encaixaram na matinê para crianças no meio da tarde. O crítico de cinema Roger Ebert acompanhou uma dessas sessões em 1969 e redigiu um texto bastante impressionado sobre o filme.
“As crianças na plateia ficaram atordoadas. Estava um silêncio quase completo. O filme havia deixado de ser deliciosamente assustador pela metade e se tornara terrível de uma forma inesperada. Uma menina no corredor da frente, talvez com uns nove anos, estava sentada paralisada e chorando. Eu não sei se as crianças mais novas realmente souberam o que as atingiu. Eles costumavam ir ao cinema, claro, e viram alguns filmes de horror antes, mas isso era algo diferente. Isso eram almas devorando pessoas – e você podia ver o que eles comiam. Havia garotinhas matando suas mães”, escreveu ao Chicago Sun-Times (leia o texto na íntegra).
Diante de estratégias de distribuição como essa, o filme não explodiu de imediato no gosto da galera. Apenas algum tempo depois foi redescoberto pelo público dos drive-ins e alcançou o status de cult. Na metade da década de 1970, quando Romero negociava com o diretor italiano Dario Argento para comandar a sequência Despertar dos Mortos, os zumbis já eram considerados criaturas recorrentes dentro do gênero.
Por um erro de apresentação nos créditos iniciais, A Noite dos Mortos-Vivos não foi devidamente registrado pelas leis de direitos autorais dos Estados Unidos. A reprodução comercial se tornou livre. Assista-o – no escuro, de preferência.