Em 2002, o produtor e roteirista Bryan Fuller trabalhou intensamente numa adaptação de Carrie, a Estranha, que seria dirigido por David Carson. O telefilme, que tem mais de duas horas de duração, foi planejado para ser extremamente fiel à obra de Stephen King, ignorando que a versão definitiva da história havia sido feita em 1976, por Brian De Palma (leia mais).
Arrastado e cheio de problemas de enredo, o filme se tornou esquecido com o tempo. Fuller, hoje, diz que o maior problema da produção foi tentar levar a trama ao pé da letra. “Aprendi uma lição importante de Carrie, em que fui um escravo do livro. Era preciso editorializar a história”, explicou em uma entrevista para Mick Garris, no podcast Post Mortem, em meados do ano passado.
Com isso em mente, quando começou a adaptar outra obra cujo imaginário popular já estava bem sedimentado, o produtor sabia que precisava se libertar do material original para criar sua própria interpretação. Assim nasceu Hannibal (2013-2015), celebrado seriado que leva para a televisão os personagens de Thomas Harris nos livros Dragão Vermelho, de 1981, e Hannibal, de 1999.
Na visão de Fuller, o psicanalista canibal que havia sido imortalizado nos cinemas na pele de Anthony Hopkins vira um sujeito interessado em discutir nossos comportamentos no mundo contemporâneo. Episódio após episódio, o personagem de Mads Mikkelsen divide o consultório com um investigador da polícia ou um assassino em potencial (ou os dois, no caso de Will Graham, o protagonista vivido por Hugh Dancy) e debate a natureza dos impulsos humanos.
Se toda narrativa de horror é uma metáfora por fundamento, Hannibal está claramente interessado em analisar a obsessão do ocidente pelo consumo de carne. Não parece ser por acaso que Fuller acabou se tornando vegetariano durante as gravações do programa. Cenas de grandes banquetes em inúmeras ocasiões são intercaladas com a de corpos com as vísceras expostas em cenas de crimes. Os momentos mais grotescos raramente são menos elegantes do que os jantares de galas promovidos pelo personagem-título.
Mesmo que tenha sido cancelada pela NBC, a equipe de produção frequentemente comenta a possibilidade de uma nova temporada em outra emissora.
No processo de adaptação, a série subverte alguns princípios da narrativa original. Enquanto Graham, no livro e nos filmes Caçador de Assassinos (1986) e Dragão Vermelho (2002), se apropria da inteligência de seu antigo aliado para investigar uma série de assassinatos, aqui ele se torna uma espécie de espelho de seus comportamentos. Uma alma gêmea, que não apenas compreende o que se passa na mente do canibal, mas a deseja.
No fundo, Hannibal é estruturado como uma grande história de amor. Graham e Lecter passam boa parte do programa dividindo experiências que se catalisam em traições, desencontros e contatos físicos que nunca são apropriadamente consumados. Se havia alguma ambiguidade no relacionamento dos dois durante os dois primeiros anos, isso logo se dissipa na terceira temporada – muito mais explícita em suas intenções.
Fuller defendeu, sem modéstia, de que o seriado era pensado como um grande filme de arte. Embora seja uma percepção pretensiosa da própria criação, é difícil negar que a atração consegue impor uma visão bastante sedutora para a história, muito mais gráfica do que a de outras adaptações e, sem dúvida alguma, rara para os padrões televisivos. Mesmo que tenha sido cancelada pela NBC, a equipe de produção frequentemente comenta a possibilidade de uma nova temporada em outra emissora. Desta vez, a ideia é adaptar o arco de O Silêncio dos Inocentes, introduzindo personagens como Clarice Starling e Buffalo Bill e, provavelmente, modificando substancialmente o material original.