Um dos melhores filmes de 2020 chegou apenas há algumas semanas à Netflix. Trata-se de O Que Ficou para Trás (2020), escrito pelo britânico Remi Weekes. O cineasta, que é negro, queria narrar um pouco da história de imigrantes das comunidades com quem conviveu enquanto crescia. O resultado é um enredo duro sobre imigração e os fantasmas que carregamos com a nossa culpa.
Na trama, um casal de refugiados sudaneses se muda para uma casa em um bairro da periferia de Londres. Ali, passam a ser assombrados por espíritos que se espremem entre as paredes da nova morada. Nas sombras, essas criaturas aparecem contorcidas, buscando espaço na tela para não serem deixadas de lado.
Os sustos são um pano de fundo para que a produção discuta a memória e o trauma de desabrigados internacionais, que abandonaram seus países para sobreviver. É um tipo de história que só ganharia corpo com uma voz dissonante dentro do gênero que estivesse disposta a narrá-la.
Weekes faz parte de uma geração de jovens cineastas negros que está renovando a representação étnica do cinema de horror com novas abordagens sobre o medo e com protagonistas que fogem ao padrão homem branco de Hollywood. Essa chave de transformação do gênero, que tem tido muita aceitação do público, tem como seu maior representante Jordan Peele, de Nós (2019) e Corra! (2017).
Tal movimento de novas vozes dentro do gênero é bastante orgânico e também tem dado muito destaque para realizadoras mulheres. Não por acaso, outro filme igualmente essencial deste ano é Relic (2020), de Natalie Erika James. A trama apresenta uma narrativa profundamente pessoal sobre uma mulher que, ao lado da filha, precisa lidar com a estranha doença mentalmente degenerativa da mãe.
Mulheres, negros e pessoas LGBTQI, entre outros grupos sociais não dominantes, estão por trás das câmeras de narrativas cinematográficas de medo há décadas. Pela primeira vez, no entanto, estamos verdadeiramente interessados, enquanto público, em prestar atenção no sexo, na etnia e na identidade sexual dos realizadores.
Foi a experiência da diretora com a própria avó que a levou a contar a história, que serve como uma grande alegoria para a doença de Alzheimer. A vontade de ver a angústia pela qual passou na vida real impactou diretamente na sua ficção e gerou uma obra muito angustiante e perturbadora.
James também faz parte de uma onda de diretoras que têm ocupado um espaço de destaque nas cadeias de produção de cinema de gênero. Nia da Costa (Candyman), Jennifer Kent (Babadook) e Ana Lily Amirpour (Garota Sombria Caminha pela Noite) são apenas alguns dos muitos nomes de cineastas que têm trabalhado com o horror nos últimos anos.
Mulheres, negros e pessoas LGBTQI, entre outros grupos sociais não dominantes, estão por trás das câmeras de narrativas cinematográficas de medo há décadas. Pela primeira vez, no entanto, estamos verdadeiramente interessados, enquanto público, em prestar atenção no sexo, na etnia e na identidade sexual dos realizadores.
Muito disso se deve ao fato de percebermos que quem tem experiências de vida distintas das do homem branco de Hollywood tem potencial de contar histórias diferentes (com as quais podemos nos identificar ainda mais). Essas novas vozes nos apresentam novos medos. Mostram como o mundo é perigoso a partir de suas próprias lentes. No meio do caminho, nos fazem ouvir melhor o próximo.
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Tem muitos projetos legais de produção de conteúdo feitos por pessoas interessadas em discutir representatividade dentro do gênero. Deixo aqui a recomendação dos podcasts The Witching Hour, sobre diretoras mulheres de horror, e Esqueletos no Armário, voltado ao público LGBTQI, além do canal no YouTube de Carissa Vieira, que tem feito discussões bem interessantes sobre a representação do negro nos filmes de medo.