Há sempre algo mais assustador em um filme de horror que se diz baseado em uma história real. Às vezes, as produções desse tipo abusam da criatividade. O Massacre da Serra Elétrica (1974), A Hora do Pesadelo (1984) e Brinquedo Assassino (1988) são rotineiramente associados a eventos verídicos. A noção de verdade, no entanto, é bem menos embaçada em narrativas sobre o sobrenatural. É o caso de O Exorcista (1974), O Enigma do Mal (1982) e O Exorcismo de Emily Rose (2005). Neste texto quero discutir particularmente os títulos inspirados nos casos investigados por Ed e Lorraine Warren e os tênues limites entre realidade e ficção que existem neles.
Li recentemente Ed & Lorraine Warren: Demonologistas, de Gerald Brittle. A obra foi publicada originalmente em 1980 e republicada pela editora Darkside no rastro da estreia de Invocação do Mal 2 (2016), longa-metragem de James Wan que foi, provavelmente, o maior sucesso comercial do gênero no ano passado.
O limite entre a verdade e a ficção para essas produções é quase invisível, pois depende de um tipo de ceticismo do público muito particular: a fé.
O livro descreve alguns dos casos, entre centenas, que foram investigados pelo casal. Há uma breve biografia de como os dois se envolveram com o mundo paranormal – por meio de uma curiosidade que surgiu da pintura de quadros que retratavam casas mal-assombradas -, além de um extenso detalhamento de como operam as entidades demoníacas, com depoimentos de padres, especialistas e testemunhas.
Como narrador, Brittle constantemente lembra o leitor de que só escreve sobre fatos que consegue comprovar, o que deixa a leitura bem mais assustadora. Alguns trechos parecem ter sido diretamente transpostos para o cinema por Wan, como o relato das enfermeiras que introduz ao público a boneca Annabelle no primeiro Invocação do Mal (2013) e a entrevista com a menina britânica possuída no segundo.
Ed & Lorraine Warren: Demonologistas é apenas uma das muitas obras que se debruçam sobre o legado dos investigadores. No ano passado, também chegou às livrarias brasileiras Invocadores do Mal, de Cheryl Wicks, lançado pela editora Pensamento. Esse interesse pela literatura pela dupla se repete na sétima arte. Títulos como Horror em Amityville (1979 e 2005), A Casa das Almas Perdidas (1991), Evocando Espíritos (2009) e Annabelle (2014) também têm algum tipo de envolvimento, direto ou indireto, com o casal.
De alguma forma, esses filmes compõem um tipo de universo transmidiático sobre o tema. Como nos exemplos dados por Henry Jenkins no referenciado A Cultura da Convergência (2008), tendemos a olhar para essas narrativas como complementares e não excludentes – mais ou menos como fazemos com as recentes adaptações de super-heróis da Marvel.
Com exceção de Annabelle, as narrativas sobre os Warren geralmente são relativamente fiéis às fontes de inspiração. Ao lado de publicações que dissecam as investigações do casal, temos uma boa base de informações sobre esses personagens e as entidades sobrenaturais que, supostamente, habitam nosso mundo. O mais estranho é que dificilmente vemos contradições grandiosas nos relatos do que ocorreu e do que é retratado nesses filmes.
Esse universo cinematográfico transmídia informal se mistura com os registros dos casos no mundo real. O limite entre a verdade e a ficção para essas produções é quase invisível, pois depende de um tipo de ceticismo do público muito particular: a fé. De um modo geral, a percepção de Ed e Lorraine sobre demônios é bastante ligada aos dogmas do catolicismo, o que é refletido de maneira não tão declarada no cinema. Como parto do princípio de que o conteúdo de uma religião é considerado verdadeiro pelos seus adeptos, defender a veracidade do conteúdo desses filmes está diretamente relacionado com crença que temos nesse mundo paranormal.