Semana passada, a coluna Olhar em Série analisou os três primeiros episódios da nova temporada de Black Mirror. Com a Netflix produzindo e distribuindo uma nova leva de episódios, a série, que antes era mais restrita ao público do Reino Unido, agora torna-se perfeita para ser “maratonada” – o chamado binge-watching – costume que, ironicamente, caberia perfeitamente em alguma história da série. Se uma distribuição maior consegue ampliar o público, também aumenta a responsabilidade do roteiro em tentar impactar mais pessoas. Afinal, Black Mirror é sobre terror e o roteiro faz questão de chocar.
Concluindo as seis novas histórias, porém, particularmente vejo uma pequena queda na qualidade dos episódios, não pelo aumento do perfil da audiência nem por uma notável “americanização” no roteiro, mas por um maior didatismo um tanto quanto incômodo na exposição das histórias, além de uma sutil mudança no que fez da série um sucesso.
Mas, para determinarmos se a qualidade de Black Mirror decaiu, é necessário entender as reais intenções do seu criador, Charlie Brooker. Em diversas entrevistas, o autor já declarou que não vê a tecnologia como uma grande vilã. Fã de séries como Além da Imaginação, Hammer House of Horror e Arquivo-X, Brooker parece inclinar sua criação mais para um gênero da televisão que não faz mais tanto sucesso: a ficção científica.
Particularmente vejo uma pequena queda na qualidade dos episódios, não pelo aumento do perfil da audiência, mas por um maior didatismo um tanto quanto incômodo na exposição das histórias, além de uma sutil mudança no que fez da série um sucesso.
Talvez seja por isso que os três últimos episódios do terceiro ano de Black Mirror não sejam tão focados no reflexo corrompido da humanidade, mas apresente um futuro bastante irreal, salientando mais o medo das pessoas em relação à tecnologia. Embora a série tenha claramente dialogado mais com o terror psicológico neste novo ano, o que fez de Black Mirror um sucesso foi a pesada crítica social, jogada no colo do público sempre de forma impactante. Não podemos dizer que essas críticas não tenham sido entregues nos seis novos episódios, mas a série se perde diversas vezes dentro de suas longas histórias, enfraquecendo seu discurso que, por muitas vezes, soa forçado, algo que não acontecia antes.
Outra coisa que enfraquece o terceiro ano é uma visível repetição nos temas já vistos nos outros anos. “San Junipero”, por exemplo, parece querer falar do mesmo assunto de “Be Right Back” (segunda temporada). “Hated in the Nation” parece ser uma continuação de “National Anthem” (primeira temporada), “Men Against Fire” lembra um pouco “Fifteen Million Merits” e “Shut Up and Dance” tem a mesma vibe de “White Bear”.
Dito isso, vamos às análises dos três últimos episódios de Black Mirror, “San Junipero”, “Men Against Fire” e “Hated in the Nation”, que se não estão a altura do que a série pode entregar, ainda é muito melhor do que diversas produções no ar atualmente.
“San Junipero”
Direção: Owen Harris; roteiro: Charlie Brooker
Aparentemente o mais “feliz” de Black Mirror, o episódio foca na história de amor de duas mulheres que transcende a vida e morte. Dizer mais do que isso seria estragar a experiência do público, mas basicamente, após morrerem, as pessoas voluntariamente podem ser enviadas a um mundo artificial de “pós-vida”. Tendo como o mote o mesmo sentimento visto no belíssimo “Be Right Back”, da segunda temporada, “San Junipero” é o episódio mais diferente de todos e discute a solidão e o entendimento da morte de forma muito bonita, em uma clássica história de amor contada por meio de diversas décadas.
O mais interessante de “San Junipero” talvez seja o seu final aparentemente feliz. Digo aparentemente porque, afinal, as únicas opções que restaram no mundo seriam aceitar o fato de que, após a morte, haveria apenas o fim ou a possibilidade de viver uma pós-vida artificial, feita por um programa de computador, em que nada acontece realmente e tudo é de mentira, um simulacro da realidade, uma sede pela nostalgia e a dificuldade em seguir em frente. Mas mesmo com a reflexão, o episódio acaba sendo bastante otimista, deixando claro que Black Mirror não quer limitar sua linguagem nem tornar seu conceito impenetrável . “San Junipero”, então, acaba focando no melhor do ser humano ao invés do pior.
Como há sempre alguma pegada na nossa realidade, a história parece levemente baseada em jogos sociais, como Second Life e The Sims, mostrando ao público como seria se tivéssemos a possibilidade de criar uma nova vida baseada em nossas vontades.
“Men Against Fire”
Direção: Jakob Verbruggen; roteiro: Charlie Brooker
A longa história sobre soldados que eliminam seres humanos mutantes, chamados de baratas, é até interessante quando pensamos no uso da tecnologia e do treinamento usado nas forças armadas, mas como quase todos os episódios dessa terceira temporada, tudo fica bastante óbvio desde o início e sobra tempo na tela. O roteiro até tenta aproximar o protagonista do público, mas não há muita empatia.
Por meio de um software implantado na cabeça, os soldados veem seus “inimigos” com um aparência monstruosa, facilitando, assim, a eliminação de cada um deles sem qualquer questionamento. Além de mascarar a verdadeira aparência dessas pessoas, o governo também controla a visão da realidade dos soldados, definindo sonhos e implantando situações artificiais por meio de uma alucinação digital.
No contexto atual, é um episódio bastante político, se pensarmos que as “baratas” poderiam ser imigrantes, qualquer tipo de estrangeiro dentro dos imaculados Estados Unidos ou da Europa ou simplesmente moradores de ruas, pessoas invisíveis que recebem o desprezo de boa parte da sociedade. Tudo isso fica bem claro e é evidente que o assunto é pertinente, mas novamente a série prefere brincar mais com o lado do terror do que propriamente causar uma reflexão. Embora haja uma forte metáfora sobre a lavagem cerebral que os soldados recebem ao entrar nas forças armadas, “Men Against Fire” não chega a empolgar e seu final, ainda que bastante amargo, parece preguiçoso
O episódio poderia ter impactado mais, por exemplo, se as tais “baratas” tivessem mais tempo e nós entendêssemos o contexto atual daquela sociedade. Além disso, controlar soldados não é algo fora da realidade, já que a CIA realmente tentou implantar um projeto semelhante. Chamado MKULTRA, o programa, que nunca chegou a ser realmente confirmado pelo serviço de inteligência norte-americano, visava desenvolver drogas e procedimentos a serem usados em interrogatórios e tortura para debilitar o indivíduo e forçar confissões por meio do controle da mente.
Mas mesmo com toda essa possibilidade, “Men Against Fire” acaba sendo um episódio não muito marcante.
“Hated in the Nation”
Direção: James Hawes; roteiro: Charlie Brooker
Uma história com um potencial enorme, contada em longos 90 minutos, cansa mais do que impacta e é uma pena que o episódio que encerra a temporada de Black Mirror seja tão enfadonho, ainda que eficiente em boa parte de sua execução. A sensação é frustrante porque tudo deveria funcionar perfeitamente, já que a premissa do episódio é Black Mirror puro.
Imaginem se os comentaristas de portais (especialmente os do G1 aqui no Brasil), sempre tenebrosos e absurdos, tivessem o poder de mandar matar quem eles mais odeiam. É basicamente esse o mote do episódio, quando os usuários do Twitter podem tuitar uma hashtag desejando a morte de determinada pessoa. Os mais votados são assassinados de forma misteriosa e quem ordena são os usuários.
A primeira metade do episódio funciona muito bem graças ao tema central. É absurda a quantidade de mensagens odiosas que circulam na internet, desejando a morte de personalidades com requintes de crueldade. “Hated in the Nation” tenta trazer de volta o impacto do episódio que apresentou Black Mirror ao mundo (o primeiro-ministro britânico e o sexo com uma porca), mas quando a história vai chegando mais perto de sua resolução, tudo fica não apenas bizarro demais como… bobo. Há uma tentativa de mudar o gênero para uma história de investigação, mas com a duração de um longa-metragem, o episódio se arrasta em cenas até um pouco vergonhosas, como abelhas perseguindo pessoas.
O desfecho ainda traz uma revelação interessante, mas há uma impressão de que o recado já foi dado há muito tempo. Ok, entendemos que o ódio na internet pode ter consequências gravíssimas, mas a história poderia ter sido muito mais humanizada ao invés de ir evoluindo para uma ficção de abelhas robóticas assassinas. Há, ainda, uma pequena reflexão sobre como o governo nos controla e nos vigia, mas no final nós lembramos apenas das abelhas.
A quarta temporada, com mais seis episódios, deve chegar à Netflix em 2017.