Em 1992, um jovem repórter chamado Caco Barcellos lançou um livro-reportagem que contava uma história horrenda: a investigação que havia feito sobre as mortes causadas pela patrulha 66 da Rota (abreviação de Rotas Ostensivas Tobias de Aguiar), uma tropa de elite da Polícia Militar em São Paulo. Seu trabalho de reportagem comprovou que, das cerca de 4.200 execuções causadas por esta tropa entre 1970 e 1992, metade delas envolviam o assassinato de pessoas inocentes.
Este é o mote do livro Rota 66, que foi transformado na série Rota 66: a Polícia que Mata pela Globoplay. Misturando a história real com elementos ficcionais, a série traz luz a este episódio que é uma mancha na história do Brasil, mas que de nenhuma forma é único, ou mesmo raro. Ele apenas explicita a política introjetada no Brasil há séculos que legitima o descarte da população pobre – sobretudo no que diz respeito às pessoas negras.
Rota 66: a Polícia que Mata, portanto, é uma adaptação que tem um timing perfeito para estrear, em uma época decisória do país quanto aos seus rumos. Uma das opções possíveis desta “rota” nacional é ao lado de uma política que se posiciona junto às forças paralelas ao governo, como as milícias que tomam para si um papel de controle e justiçamento torto – exatamente como faziam os policiais psicopatas da Rota 66.
A Globoplay já entregou quatro episódios da série, e pretende estrear os últimos quatro nas próximas semanas. Nesta análise, contamos o que a primeira fase já nos entrega.
‘Rota 66’: a história de um repórter
Rota 66 traz um claro esforço no roteiro em explicar como funciona o ofício jornalístico para quem não tem a menor ideia.
É interessante notar que, pelo que nos foi apresentado, Rota 66 parece caminhar em dois eixos. O primeiro, e mais importante, é pela ótica das vítimas, das pessoas que tiveram a infortúnio de cruzar no caminho destes policiais – seja tornando-se vítimas fatais deles, seja porque perderam seus familiares.
O que ocorria, como a série nos revela, era um conluio complexo entre a Polícia Militar e outros setores, como a saúde. As pessoas assassinadas pela Rota 66 iam parar nos hospitais públicos mesmo que já estivessem mortas, e forjavam-se relatórios que davam contam de tiroteios, sendo que o que havia ocorrido eram execuções (ou seja, as vítimas quase nunca reagiam ou mesmo estavam armadas).
Deste modo, somos convidados a olhar para esta realidade de maneira empática, mesmo quando os assassinatos eram de pessoas que cometeram crimes – mas, ainda assim, obviamente não cabia à polícia julgar e executar uma pena de morte, que é inexistente no Brasil. Mesmo os chamados “bandidos” são sujeitos com pais, mães e avós, e a série faz questão de deixar isso bastante claro.
Aos poucos, outros personagens vão aparecendo que trazem corporeidade à tragédia: a dona de casa Anabela (Naruna Costa), que tem seu marido Divino (Felipe Oládélè) assassinado pela rota, e o sargento Homero (Aílton Graça), cujas vida e convicções mudam quando seu filho recém-formado em Direito morre nas mãos dos PMs.
Já o segundo eixo é um ângulo inusitado em que testemunhamos a chegada de um jovem repórter gaúcho a São Paulo, onde passa a trabalhar na revista IstoÉ. Ainda que seja um novato, Caco Barcellos (vivido pelo ator Humberto Carrão, que está bem no papel, embora haja um certo desconforto pelo seu sotaque carioca) é impetuoso e está disposto a sacrificar a própria vida (e dos seus familiares) em prol de desvendar as injustiças que ocorrem no Brasil.
O mais surpreendente da série, ao que me parece, é o olhar humano e vulnerável que traz ao jornalista Caco Barcellos, cuja reputação o consolidou como uma espécie de unanimidade nacional. Fica claro que Caco, neste começo de carreira, largou seu filho bebê para construir-se enquanto profissional. Quando a mãe da criança bate em sua porta, ele acredita não ter outra escolha a não ser seguir trabalhando na reportagem contando com a ajuda de pessoas estranhas.
O foco sobre o trabalho jornalístico
Se, por um lado, Rota 66: A Polícia que Mata tem o trunfo de relembrar este episódio maldito (o que, de modo algum, sugere que o genocídio da população pobre e negra esteja no passado do país), por outro, a série é também muito atual na abordagem interessante e didática que faz do trabalho dos jornalistas.
Isso se torna ainda mais urgente em tempos que há uma campanha de descrédito aos jornalistas profissionais. Há, de alguma maneira, um interesse em criar uma espécie de “letramento” ao público sobre como funciona o fazer jornalístico. O jovem Caco, por exemplo, conta o tempo todo com o apoio de repórteres mais experientes que o instruem no caminho árduo da investigação, que cobra preços pessoais a ele de todos os lados.
Neste sentido, há um claro esforço no roteiro em explicar como funciona o ofício de um jornalista para quem não tem a menor ideia. Um dos recursos é o foco constante nas anotações de Caco quando vai a entrevistas ou assiste a julgamentos dos policiais (vale lembrar que a apuração da reportagem se relaciona ao fato de que os membros da Rota 66 foram inicialmente absolvidos por seus crimes).
Mas a série não se furta também a colocar visões bastante críticas quanto ao que os jornalistas são capazes de fazer. Isto aparece na abordagem dos jornalistas (e jornais) sensacionalistas que tratavam do mesmo fato apurado por Caco. Enquanto a IstoÉ, por meio das reportagens de Barcellos, carregava um tom de denúncia sobre o morticínio realizado pelos PMs, outros veículos (fica claramente identificável que se refere ao jornal paulista Notícias Populares, embora ele não seja nomeado) noticiavam as mortes como se fossem feitos de heróis que estavam limpando a criminalidade na periferia.
Em tempos que estas distinções sobre a responsabilidade do jornalismo se tornam mais nebulosas (o que ocorre, sem dúvida, pelos interesses políticos de alguns), é bem importante ressaltar algo que deveria ser bem óbvio: que as notícias ajudam a moldar a realidade. Rota 66: a Polícia que Mata é ainda uma história urgente que deve ser assistida por todo mundo.
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