Embora estejamos vivendo um período no Brasil em que a desesperança parece ser a palavra de ordem, países mais desenvolvidos têm os mesmo problemas, em maior ou menor grau. A diferença é que nós, de longe, não conseguimos enxergar tão bem assim. Para quem está lá, fica mais fácil perceber as injustiças e os absurdos que acontecem diariamente, mas isso não quer dizer que eles (ou nós) queiramos ver isso de uma forma tão clara, especialmente em meios ditos “de massa”. Talvez, por isso, obras como Seven Seconds sejam tão importantes na televisão. É preciso coragem para expor a podridão de um país, especialmente os Estados Unidos, conhecidos como patriotas irreparáveis com uma democracia invejável.
Seven Seconds é uma criação de Veena Sud para a Netflix baseada no filme russo The Major. Sud é a mente por trás da versão norte-americana de The Killing. Tal como sua última série, a pergunta central da trama nunca é quem matou quem — no caso, aqui, Brenton Butler, um adolescente negro de 15 anos que vivia em Jersey City (região metropolitana de Nova York) com sua família —, mas o contexto e as consequências dessa morte. Logo nos primeiros minutos, nós já descobrimos que o garoto foi atropelado acidentalmente por Pete Jablonski (Beay Knapp), um policial da cidade que estava indo ao hospital para cuidar da sua esposa, que enfrenta uma gravidez de risco.
Em estado de choque, Jablonski avisa o que houve ao chefe da polícia, Mike Diangelo (David Lyon), que rapidamente orquestra uma manobra calculada para esconder o crime e livrar Jablonski da cadeia. Afinal, quem se importaria com a morte de um garoto negro que possivelmente tinha ligações com gangues e tráficos de drogas? Ao mesmo tempo, se um policial branco for acusado de matar um garoto negro, a coisa pode ficar feia.
A história se baseia em questões raciais enraizadas nos Estados Unidos – e infelizmente quase no mundo inteiro.
A partir do acidente, a série evita entrar na linha investigativa clássica e nós vamos acompanhando a realidade de uma América que ninguém quer, de fato, presenciar. Da corrupção da polícia e do governo à corrupção das gangues de rua, todo mundo olha para o próprio umbigo, sem que alguém se importe com a morte do jovem. Já mostrando uma assinatura própria, Veena Sud aborda todas essas questões em uma Nova York que nada lembra aquela vista em outras produções, constantemente mostrando a Estátua da Liberdade para contrastar justamente à falta de liberdade dos cidadãos, especialmente os negros, que ficam à mercê de um sistema cada vez mais sujo.
Embora a série tenha diversos furos no roteiro — algumas situações que forçam a mão para a narrativa andar para a frente são um pouco incômodas —, a história se baseia em questões raciais enraizadas nos Estados Unidos e infelizmente no mundo inteiro. Em uma sociedade, o que importa é quem tem poder e quem não tem, quem é ouvido e quem não é, quais vidas importam e quais não valem a pena. O adolescente morto por um atropelamento foi abandonado agonizando na neve durante horas até morrer na cama do hospital. Primeiramente, para que a morte do garoto fosse amenizada e relativizada, a polícia divulgou para a imprensa que Brenton era um possível integrante de uma gangue perigosa de traficantes. Como alguém poderia defender bandido? O enredo soa terrivelmente familiar após os últimos acontecimento nos noticiários brasileiros.
À frente das investigações está o detetive Joe Fish Rinaldi (Michael Mosley) e a assistente do Ministério Público, K.J. Harper (Clare-Hope Ashitey). Tal como em The Killing, os investigadores não são glamourizados. Joe enfrenta problemas pessoais com a ex-esposa e a filha, além de ser visto como piada pelos policiais, e K.J sofre de alcoolismo e vive solitária e deprimida. Se na primeira série tínhamos a chuva de Seattle, agora temos a neve opressora de Nova York. Os dois estão sempre um passo atrás do público e da polícia corrupta, o que dá à série uma lentidão necessária para a história andar com mais veracidade, algo que pode afastar um público mais ansioso. Boa parte das crítica à The Killing era por causa da morosidade da investigação e a demora para que perguntas fossem respondidas. Entretanto, quando as peças começam a andar, a série ganha ritmo e tons mais urgentes, o que a transforma em um ótimo produto para ser maratonado.
Mas a grande alma da série atende pelo nome de Regina King, que vem mostrando uma força absurda de atuação desde American Crime, outra série que colocava o dedo na ferida dos americanos. King interpreta a mãe de Brenton, Latrice. Sua personagem vive um luto e uma raiva comoventes. Latrice ainda precisa encontra forças para ser ouvida e para que as pessoas criem empatia com a morte do filho, já que todo mundo parece perdido em meio às investigações. A mãe é vista como descontrolada, depressiva e louca, além de ser constantemente enganada por quem ela pede ajuda. O talento da atriz ainda tem espaço para mostrar uma mulher que tem sua fé em Deus abalada após o filho ter sido morto de forma tão brutal.
“Enquanto eu rezava para que meu filho vivesse, alguém rezava para que ele morresse. Por que vou acreditar em um Deus que atende um assassino ao invés de uma mãe?”. Nesse dilema, o marido de Latrice, Isaiah (Russel Hornsby), tentar superar o luto por meio da fé, o que o leva a constantes provações, como a perda do emprego logo após seu filho ter sido morto. O personagem vai caindo até a forte cena em que tenta destruir as lembranças do filho dentro do quarto do menino.
Com clara inspiração em The Wire, Seven Seconds pode não ter um roteiro tão bem trabalhado quanto à serie da HBO ou mesmo The Killing, mas serve para, mais uma vez, mostrar uma realidade que parece nunca melhorar, ou melhorar pouco. Sem definições de quem é bonzinho ou quem é vilão, Seven Seconds tenta mostrar que, na imensa maioria das vezes, a justiça não será feita, e que o mundo continuará a rodar mesmo assim. O sentimento é de pessimismo e não há escapismo. É o velho choque de realidade que, de vez em sempre, nós precisamos ver.