Se o mundo como nós conhecemos só existe porque reprimimos o sexo e violência (de acordo com o tio Freud), pessoas que não se enquadram nesta afirmativa tragicamente serão consideradas doentes. De fato, caso nós não tivéssemos um controle moral sobre nossa libido e nossa raiva, o convívio seria um pandemônio. Mas algumas pessoas não têm. Ou somos nós que temos muito? Afinal, somos considerados normais porque alguém, em algum momento da história, disse que esta era a norma, a forma. Mas vai saber, não é mesmo?
Andrew Cunanan, garoto de programa e serial killer que matou pelo cinco pessoas nos anos 1990 — incluindo o estilista Gianni Versace — não se enquadrava nas normas pré-estabelecidas. Se o seu comportamento antissocial já era um problema, viver em um país berço dos flashes, glamour, dinheiro e fama piorava ainda a situação. Distorcendo a sua realidade e a realidade média de todos ao redor, Andrew queria ser tão famoso quanto aqueles que ele tentava imitar. Não importava quantas conquistas amorosas Andrew conseguia enganando vários homens. Ele queria sempre mais. Mais drogas, mais dinheiro, mais fama, mais prestígio, mais amor. Andrew queria ser idolatrado, assim como os outros homens também eram.
Na manhã de 15 de julho de 1997, o estilista Gianni Versace fez sua caminhada diária, comprou revistas e retornou para sua mansão na praia de Miami. Ele nunca passou dos degraus da entrada, pois Andrew disparou dois tiros em sua cabeça. O chocante assassinato, o motivo e uma profunda análise nas vidas de ambos, vítima e assassino, se desenrola ao longo de nove episódios da nova temporada da série de Ryan Murphy.
O mote da segunda temporada de American Crime Story, então, não é sobre Gianni Versace, embora leve seu nome no subtítulo, mas em como Andrew Cunanan encaminhou sua trajetória de vida até chegar no crucial momento em que se tornou conhecido mundialmente. Baseado no livro da jornalista Maureen Orth, Vulgar Favors, a série do FX talvez tenha errado na divulgação por dar a entender que veríamos uma biografia de Versace, o que deixou bastante gente frustrada, mas o equívoco acaba por aqui. Ao escolher mostrar como Andrew era perturbado, Ryan Murphy consegue explorar uma América que não parece ter aprendido muito com seus erros do passado até hoje.
The Assassination of Gianni Versace é diferente da excelente primeira temporada da antologia, The People vs. O.J. Simpson. Sai o tom documental e entra uma história puramente ficcional apenas baseada em um livro e nas reportagens da época, o que garante uma liberdade criativa para melhorar a narrativa. É assim que Ryan Murphy e seus produtores e roteiristas mostram toda a sensibilidade para contextualizar o que estamos vendo na tela.
A série dialoga com a sociopatia de Andrew dentro de um mundo esquizofrênico.
Seria bastante fácil colocar Andrew Cunanan, interpretado por um inspirado Darren Criss, apenas como um personagem perigoso e assustador, mas Murphy vai além. Assim como fez no primeiro ano da série, American Crime Story prefere analisar o meio em que aqueles personagens vivem. Murphy cria paralelos à narrativa sobre o que estava ocorrendo no início dos anos 1990 e como o culto à celebridade ganhava cada vez mais força. Assim, vemos como a comunidade gay estava agonizando com as constantes mortes por causa da epidemia da Aids, como a homofobia dentro das instituições militares levantou uma discussão acalorada nos Estados Unidos e como o país ainda sentia os efeitos do caso O.J, fato mostrado na ineficiência da polícia ao encontrar Cunanan e no medo de apontar suspeitos. Fora isso, Cunanan acompanhava de perto o mundo glamouroso e mentiroso das celebridades, especialmente o de Gianni Versace (Édgar Ramírez).
A série opta por fragmentar a narrativa e nos mostrar as ações de Andrew em diversos momentos. Isso dá espaço para que o ator Darren Criss brilhe em absolutamente todos os momentos. Se ele já mostrava algumas fagulhas de talento em Glee, aqui ele apresenta todo seu potencial dramático interpretando um sociopata de olhos doces, inteligentíssimo e que conseguia transitar em todos os meios possíveis. Com sutilezas, Criss vai ficando vulnerável e começa a mostrar sua carência e fraqueza diante de personalidades que são mais ricos, bonitos e talentosos (na cabeça dele, claro). A série, então, dialoga com a sociopatia de Andrew dentro de um mundo esquizofrênico onde a busca pela fama torna as pessoas tão doentes quanto um serial killer, apenas em níveis diferentes.
Para quem tem mais curiosidade sobre os Versace, a série dá alguns vislumbres de como era a dinâmica da família, mas não se aprofunda tanto. Ainda assim, Penélope Cruz se destaca como Donatella Versace, aparecendo sempre como uma mulher cansada de viver pelo irmão, com um semblante pesado, um andar duro e sempre preocupada. Tal como Édgar Ramírez e Rick Martin (que interpreta o namorado de Versace, Antonio D’Amico), há mesmo a impressão de que o talento da atriz foi um pouco desperdiçado dentro da narrativa, mas caso nós acompanhássemos por mais tempo a vida da família Versace do que a do assassino, o objetivo da série de analisar um crime e seus efeitos na sociedade se perderia facilmente.
Com personagens secundários que enriquecem a história,The Assassination of Gianni Versace pode desanimar parte do público que espera ver mais a vida do estilista, entretanto, a antologia American Crime Story certamente é o melhor produto que Ryan Murphy já fez até agora na sua carreira.
Em tempo, a terceira e quarta temporada de American Crime Story ainda são uma incógnita. O presidente do FX afirmou que o enredo do próximo ano, que deve ser sobre o furacão Katrina, não está garantido, e a história da quarta temporada, que seria sobre o escândalo Bill Clinton-Monica Lewinsky, foi cancelada por Ryan Murphy. A única certeza é de que a antologia continuará a ser produzida.