Em conturbado período pós Primeira Guerra Mundial, na década de 1920, a sociedade alemã vivia momentos de extrema dúvida e tensão. Um país devastado, com sua estrutura destruída e muitas pessoas em péssimas condições de vida. O que seria do país? O que aconteceria dali para frente? Ninguém sabia responder ao certo.
Com poucas respostas e muito a ser sentido, realizadores de cinema tentaram expressar todos estes sentimentos angustiantes através de suas câmeras. Para isso, utilizavam formas distorcidas, atuações extravagantes, contrapontos de claros e escuros e planos estranhamente enquadrados. Com particulares técnicas, nascia o Expressionismo Alemão, vanguarda que consagrou cineastas como Fritz Lang (Metropolis) e Robert Wiene (O Gabinete do Dr. Caligari).
Elemento fundamental na composição da linguagem do estilo, a utilização de sombras vinha cheia de simbolismo. Confrontando claros e escuros, diretores de fotografia eram precisos ao representar as dúvidas e angústias do momento, a partir de um elemento que representa o desconhecido, algo impossível de ser visto por inteiro, e, principalmente a dualidade entre o real e o incerto.
A eficácia e a representatividade foi tamanha, que, graças ao Expressionismo Alemão, as sombras passaram a caminhar junto da realização de cinema, tendo a elas novos significados atribuídos e norteando o trabalho de diretores de fotografia até os dias de hoje.
Diretamente influenciado pela vanguarda alemã, o film noir se popularizou nos anos 40 e 50. Em tradução livre do francês, o “filme escuro” é um gênero marcado por narrar histórias de crimes, com personagens principais normalmente sendo investigadores particulares ou policiais.
Os percalços vividos pelo protagonista fazem com que suas convicções e métodos sejam normalmente confrontados, suscitando dúvidas e angústias ao passo que investiga o desconhecido. A figura da femme fatale, personagem feminino que cumpre função de confronto e instabilidade mental do protagonista, é também associada a alguns filmes do gênero.
O cinema é um mosaico de referências. Mestres embreantes da sétima arte têm seus legados celebrados pelos ícones de hoje, e assim a realização cinematográfica vai se reinventando.
Com isso, a situação de extrema dualidade do personagem era, quase sempre, representada por sombras. Em trabalho conjunto de diretores de fotografia e de arte, o contraponto impregnava o protagonista em um dos ambientes que mais frequentava: seu próprio escritório. Simbolicamente, suas dúvidas se manifestam até mesmo em um lugar do qual tem o controle.
E não é só de dualidade psicológica que vivem as sombras no cinema. A ficção científica, ao longo de todo seu desenvolvimento, sempre utilizou a antítese entre claro e escuro para representar o medo do desconhecido, de alguma ameaça extraterrestre ou criatura assustadora.
Em Alien (1979), o diretor de fotografia Derek Vanlint é preciso ao colocar sombras na extensão de praticamente toda a nave, indicando a constante ameaça ali presente.
Muitas vezes não podemos visualizar aquilo que não podemos lembrar. E no cinema não é diferente. Como podemos sentir a angústia de um personagem que sofre de amnésia? Como podemos entender, de maneira visceral, a dualidade entre memórias turvas e fatos concretos? O diretor de fotografia Wally Pfister tem a resposta em Amnésia (2000), de Christopher Nolan, e ela seria impossível sem o Expressionismo alemão.
Além disso, é muito comum vermos a fotografia trabalhando em incrível sintonia com a direção de arte, como mostrado já nesse texto. Mas, e quando a própria sombra se torna um elemento físico? Explicando melhor, algumas sombras são tão ricas em linguagem e simbologia, que agem praticamente como elementos sólidos.
Em O Silêncio dos Inocentes, o primeiro encontro de Clarice Starling (Jodie Foster) com Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), acontece quando a investigadora faz uma breve entrevista com o psicopata na prisão. A partir daí, a vida de Starling torna-se caótica, graças ao controle e calculismo de Lecter.
O primeiro contato, neste caso, serve como o momento em que a personagem de Jodie Foster entra, definitivamente no universo de Hannibal, para nunca mais sair. Visualmente, Tak Fujimoto cria uma sombra, que, ao percorrer toda a extensão da face da detetive enquanto ela caminha, funciona como um portal, algo pelo qual ela passa, e, não estará mais lá caso tente voltar.
Apesar da forte ligação com o medo e o desconhecido, as sombras nem sempre carregam essa simbologia. Angústias pessoais, dúvidas em relações a crenças e modos de vida também são, com muita sensibilidade, retratadas por claros e escuros.
Em Silêncio, de Martin Scorsese, após abrir mão de sua fé católica para não ser torturado e passar anos seguindo tradições japonesas, o padre jesuíta Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) recebe um pedido de perdão de Kichijiro (Yosuke Kubozuka), que pede que seja benzido pelo padre.
É o momento de conflito interno máximo de Rodrigues, uma vez que o jesuíta nota que não consegue, de jeito nenhum, se distanciar de suas raízes católicas. Sendo assim, o diretor de fotografia Rodrigo Prieto não hesita ao iluminar apenas metade do rosto de Rodrigues, enquanto a outra metade é tomada por uma sombra. Tudo em um lindo primeiro plano de Scorsese, o que faz com que toda a angústia do personagem pode ser vista de muito perto e prontamente assimilada pelo espectador.
O cinema é um mosaico de referências. Mestres embreantes da sétima arte têm seus legados celebrados pelos ícones de hoje, e assim a realização cinematográfica vai se reinventando. A fotografia expressionista se tornou referência para diversos cineastas e gêneros de cinema, que não hesitam em criar brilhantes releituras dos trabalhos de Willy Hameister, Karl Freund e Gunther Rittau, precursores da técnica.
Um diretor de fotografia dificilmente utiliza uma sombra sem que ela tenha grande simbologia na linguagem do filme. Das mais gritantes às extremamente sutis, elas agregam densidade e elegância a uma produção, e percebê-las sem dificuldade é apenas uma questão de treinar os olhos.
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