Martin Scorsese guardava este projeto há cerca de 30 anos, sempre buscando o melhor momento para levá-lo às telas. Adaptação da obra Silence, do japonês Shusaku Endo, o filme foi singelamente ignorado nos grandes prêmios de Hollywood (apesar de uma única – e merecida – indicação ao Oscar) e até pelo público nos cinemas, que pareceu pouco disposto a encarar as quase três horas de duração do longa.
A história do cinema nos apresenta inúmeros retratos sobre a fé e as religiões, especialmente a cristã. Scorsese tem em sua carreira lançado um olhar sobre o tema, acrescentando certa importância a ele em sua filmografia. Desde o personagem de Harvey Keitel em Quem Bate à Minha Porta e sua culpa católica, estreia cinematográfica do diretor, até obras como A Última Tentação de Cristo e Kundun, Scorsese vem lutando com o assunto. Em Silêncio, que concorreu ao Oscar de melhor fotografia, o diretor retorna à religiosidade e à fé, mas sob um viés diferente do que suas obras anteriores navegaram.
Perfeito? Não, inclusive é até um pouco difícil. Contudo, Silêncio é um filme bastante provocador e merecia, certamente, maior reconhecimento.
Silêncio narra a história de dois padres jesuítas portugueses que, no século 17, partem para o Japão a fim de procurar o padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), um padre jesuíta que, segundo notícias recebidas, renunciou à sua fé após ser torturado. Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield, de A Rede Social e Até o Último Homem) e Francisco Garupe (Adam Driver, da série Girls) são jovens alunos do padre Ferreira, e mesmo sem a crença dos superiores de que podem encontrá-lo, partem para o Japão em sua busca. Nesta época, o cristianismo havia sido banido do país e seus fiéis duramente perseguidos.
Para ajudar na missão dos jesuítas, Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), um japonês cristão que renunciou sua fé para se salvar, concorda em orientá-los. Chegando às terras nipônicas, os padres são tomados de uma surpresa entusiasmante ao notar que havia uma grande quantidade de cristãos, pequenos grupos que exerciam sua fé em segredo. Este entusiasmo é contraposto com a perseguição sofrida pelos fiéis, e consequentemente pelos padres, por parte do inquisidor Inoue (Issey Ogata), um homem cuja brutalidade remete aos horrores cometidos na Europa (e em suas colônias) em nome do catolicismo durante a mesma época: decapitava-os, queimava-os vivos ou os crucificava próximos ao mar, até que a maré subisse e os afogasse.
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Há um intenso debate teológico e de fé no centro de Silêncio. Não é só através dos japoneses que Rodrigues vê sua fé ser testada (a metáfora com Judas no personagem Kichijiro é interessantíssima), mas também nos embates com o próprios padre Ferreira – e aqui Liam Neeson dá um show de atuação. Claro que há um certo exagero em algumas abordagens, que volta e meia retornam na obra (como o perdão, por exemplo), mas Scorsese vai bem ao refutar abordar clichês que Hollywood por vezes evoca sobre o Oriente, e até mesmo a atuação de Garfield é elogiável, ainda que falte a ele a intensidade de um Willem Dafoe. Por sinal, sua atuação em Silêncio era muito mais digna de uma indicação ao Oscar de melhor ator do que em Até o Último Homem. Coisas de Hollywood.
O trabalho do diretor de fotografia mexicano Rodrigo Prieto, com quem Scorsese já havia trabalhado em O Lobo de Wall Street, é fundamental ao oferecer uma riqueza estética ao Japão exposto pelo olhar do diretor norte-americano, que torna o longa um de seus melhores trabalhos nos últimos anos. Perfeito? Não, inclusive é até um pouco difícil. Contudo, Silêncio é um filme bastante provocador e merecia, certamente, maior reconhecimento.