Há realidades tão duras e cruéis no Brasil, que a maioria prefere ignorar, fazer de conta que não existem. 7 Prisioneiros, filme de Alexandre Moratto (de Sócrates), recém-lançado pela Netflix, tem a coragem de falar de uma delas: relações de trabalho análogas à escravidão.
Após ser exibido nos festivais de Toronto e de Veneza, onde venceu um prêmio numa mostra paralela, 7 Prisioneiros, desde sua estreia no serviço de streaming, que também o produziu, em parceria com a O2 de Fernando Meirelles, vem dividindo opiniões no Brasil, muito por conta de seu desfecho em aberto, sem um final feliz ou redentor. Sim, o público tem dificuldade não apenas de enxergar, mas de aceitar a brutalidade reinante no Brasil.
O filme, misto de drama social e thriller, retrata a jornada infernal de um grupo de jovens de uma zona rural miserável, que vai para São Paulo trabalhar num ferro velho, seduzido por falsas promessas de emprego e dinheiro. Em uma van, são levados do campo para a metrópole, e vemos o contraste entre a pobreza extrema em que vivem e a opulência da cidade grande, com seus arranha-céus, através dos olhos deslumbrados dos personagens. Todo esse encantamento dura pouco, não mais do que uma noite.
No dia seguinte, o despertador da vida real toca bem alto, de forma estridente. Luca, suposto proprietário do ferro velho, vivido por um Rodrigo Santoro transformado, deixa claro que, por um bom tempo, não receberão qualquer salário: a péssima hospedagem, a comida, o transporte para São Paulo e o dinheiro dados às famílias, como adiantamento, terão de ser pagos com trabalho não remunerado. E quando os garotos se rebelam, são trancafiados a corrente, chave e cadeado. Tornaram-se detentos da ilusão que abraçaram.
O protagonista de 7 Prisioneiros é Mateus, vivido pelo ótimo Christian Malheiros, que também estrelou Sócrates. Ele é o mais esclarecido do grupo e tem o sonho de tornar-se aviador. O desejo de voar torna-se uma metáfora algo patético, porém também poderosa, quando estão todos engaiolados. Assumindo o papel de líder, ele tenta negociar com Luca um prazo para que ele e seus companheiros paguem o que devem, em troca de muito trabalho. Como suas famílias também estão sob ameaça, fugir torna-se um risco muito grande.
O protagonista de 7 Prisioneiros é Mateus, vivido pelo ótimo Christian Malheiros, que também estrelou Sócrates.
Como vira uma espécie de assistente de Luca, um personagem odiável que aos poucos se revela multifacetado, de certa forma também vítima das mesmas engrenagens, Mateus aos poucos vai se dando conta que a situação em que estão é parte de um esquema muito maior, que envolve o tráfico internacional de pessoas e, como não poderia deixar de ser, a participação de políticos.
Além de um roteiro bem alinhavado por Moretti e Thayná Montesso, 7 Prisioneiros conta com um sólido elenco, dos atores principais, Santoro e Malheiros, aos coadjuvantes, em especial Vitor Julian, que vive Ezequiel, o mais frágil do grupo, e Lucas Oranmian, que brilha como Isaque, espécie de “vilão” entre os prisioneiros.
Nada disso funcionaria, no entanto, se o diretor não tivesse a capacidade de conferir autenticidade à realidade que denuncia. Sua câmera, com o apoio da ótima direção de fotografia de João Gabriel de Queiroz (também de Sócrates), é inquieta, investigativa, colocando o espectador muito perto dos personagens. A direção de arte, assinada por William Valduga, tem papel fundamental nesse sentido: o ferro velho é mais do que um cenário. É a materialização da precariedade em que os personagens e o Brasil estão imersos.
Volto agora à jornada de Mateus em 7 Prisioneiros. Esse é, talvez, o maior trunfo do filme, e também a maior pedra no sapato do espectador. Embora ele seja, em tese, o herói da trama, o caminho por ele percorrido não é exatamente virtuoso, edificante. À medida em que busca uma saída, e se torna um sobrevivente, muitas de suas escolhas vão incomodar o público mais ingênuo, que nele buscar traços mais messiânicos. Moretti opta por uma corajosa abordagem realista, na qual há pouco ou nenhum espaço para heroísmo. Essa escolha é bruta demais para quem procura o escapismo nosso de cada dia na Netflix.