Quando estreou em 1985, A Marvada Carne, dirigido por André Klotzel, conquistou público e crítica de forma surpreendente. Em meio a uma década marcada pela crise econômica, pela instabilidade política da transição democrática e por um cinema brasileiro que se reinventava em meio a dificuldades, o filme apareceu como uma espécie de fábula rural que conciliava humor, lirismo e crítica social. Ganhou o Festival de Brasília daquele ano e se tornou uma referência, ainda que muitas vezes lembrado mais como “pérola cult” do que como obra estruturante de uma cinematografia em transformação.
Agora, ao retornar em cópia remasterizada, A Marvada Carne se mostra ainda mais atual. Sua narrativa, aparentemente simples, atravessa camadas de significados que vão da valorização da cultura popular à releitura de arquétipos do Brasil rural, especialmente aqueles que, desde a chanchada e a filmografia de Mazzaropi, moldaram a imagem do caipira no imaginário nacional.
Para Fernanda Torres, A Marvada Carne foi um marco incontornável. Sua estreia no cinema havia ocorrido dois anos antes, em Inocência (1983), de Walter Lima Jr., adaptação do romance de Visconde de Taunay. Mas foi no papel de Carula, a jovem que conquista o ingênuo Nhô Quim (Adilson Barros), que a atriz se consolidou como revelação.
Carula é uma personagem que transita entre dois polos: representa a tradição, com sua vida regida por costumes e ritos do interior paulista, mas ao mesmo tempo projeta desejos de emancipação e agência feminina. Fernanda Torres, ainda muito jovem, imprime à personagem uma energia que mescla frescor e densidade, antecipando a potência interpretativa que logo a levaria a papéis mais complexos, como em Eu Sei que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, que lhe renderia o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes.
Em A Marvada Carne, Torres já mostrava a capacidade de habitar personagens com naturalidade e inteligência emocional, sem cair no estereótipo ou na caricatura — um risco constante no gênero.
O cinema brasileiro possui longa tradição de retratar o “homem do interior”, e foi Mazzaropi quem consolidou esse arquétipo, com dezenas de filmes entre as décadas de 1950 e 1970. O caipira mazaropiano, ingênuo e esperto ao mesmo tempo, tornou-se um dos grandes símbolos de identidade nacional nas telas.
O cinema brasileiro possui longa tradição de retratar o “homem do interior”, e foi Mazzaropi quem consolidou esse arquétipo, com dezenas de filmes entre as décadas de 1950 e 1970.
Klotzel conhece essa tradição e decide revisitá-la sem ingenuidade. Em vez de simplesmente reproduzir o modelo, ele o tensiona. Nhô Quim, vivido por Adilson Barros, é ao mesmo tempo herdeiro e contraponto do caipira mazaropiano: seu desejo de comer carne — uma obsessão quase mítica — guia a narrativa, mas a jornada que empreende é mais alegórica do que literal. O humor, em vez de apenas caricatural, ganha contornos de parábola, enquanto a relação com Carula introduz uma dimensão afetiva e simbólica que raramente encontrava espaço nos filmes de Mazzaropi.
O resultado é uma obra que dialoga com o passado, mas com um olhar moderno. Se Mazzaropi construiu o caipira como um tipo social popular e acessível, Klotzel o reinscreve como figura literária e cinematográfica, capaz de condensar tensões entre campo e cidade, tradição e modernidade, riso e melancolia.
A Marvada Carne também deve ser lido à luz do contexto em que surgiu. A década de 1980 foi marcada por um cinema que buscava novos caminhos diante do esgotamento do modelo industrial baseado na Embrafilme, que sofria cortes e instabilidade. Filmes como o de Klotzel mostravam que era possível produzir obras relevantes, populares e inventivas, mesmo em cenário adverso.
Ao articular a cultura popular, a oralidade do interior paulista e uma mise-en-scène que privilegia o lirismo, o filme se destaca por não se enquadrar nem na lógica puramente comercial, nem no cinema de autor hermético. Situa-se num ponto de equilíbrio raro: consegue ser acessível sem abrir mão da sofisticação estética.
O relançamento de A Marvada Carne, em cópia restaurada, não é apenas oportunidade de rever um título premiado. É, sobretudo, um convite a repensar a maneira como o cinema brasileiro representou sua gente simples e suas tradições. O filme ilumina o valor das narrativas caipiras, mas o faz com um olhar crítico, revelando como esses personagens podem ser mais do que tipos estereotipados — podem ser, de fato, metáforas da própria condição brasileira.
Rever o longa hoje é também reencontrar uma Fernanda Torres em estado de revelação, numa interpretação que prenunciava uma carreira brilhante. É testemunhar como André Klotzel, ainda no início de sua trajetória, soube reinventar um gênero inteiro. E é, acima de tudo, perceber que A Marvada Carne segue vivo, saboroso e necessário, como um prato raro da cinematografia nacional.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.






