Fiz questão de assistir ao drama histórico A Viagem de Pedro no 7 de setembro. Queria poder pensar no significado dos 200 anos da proclamação da Independência do Brasil em um outro lugar, que não o do ufanismo, ou da vergonhosa manipulação política da data. A estratégia, pelo menos para mim, deu certo.
O filme é centrado na figura do primeiro imperador do Brasil, d. Pedro I, vivido por Cauã Raymond, também um dos produtores do filme, não como um herói nacional, e sim como um homem fraturado, repleto de falhas.
Dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, de Bicho de Sete Cabeças, o longa é uma espécie de anti épico, que narra o regresso de Pedro I para a Europa, em 1831, após ter abdicado do trono brasileiro em favor do filho, d. Pedro II. Ele retorna a Portugal com a missão de reclamar o trono para a sua filha mais velha, Maria da Glória, em uma guerra contra seu irmão mais novo, d. Miguel. Mas também porque parte poderosa do Brasil, a elite fundiária, não o queria mais.
Esse período a bordo de um navio da armada britânica delimita a duração ficcional da narrativa. No confinamento da embarcação, um não-lugar entre dois mundos, o imperador, ou melhor, a imagem que a história oficial urdiu dele, é desconstruída pela visão de uma cineasta mulher, que assina o roteiro e a direção.
Esse ponto de vista feminino faz, sim, muito diferença: Pedro é retratado como um homem atormentado, que se julgava preterido pela mãe, a rainha Carlota Joaquina, que preferia Miguel, e se sentia na necessidade.
Como há pouca ou quase nenhuma documentação sobre esse período, que compreende os meses entre o embarque no Rio de Janeiro e o desembarque na França, foram tomadas liberdades muito bem-vindas.
‘A Viagem de Pedro’: Leopoldina
A imperatriz Leopoldina (a alemã Luise Heyer, excelente), primeira mulher de Pedro I, morta em 1826, é uma ausente onipresente no filme. Seu espectro é uma espécie de narradora do além, que também assombra os pensamentos do monarca durante toda a travessia do Atlântico.
Pedro é corroído pela culpa, uma maldição que o acompanhará até o fim da vida, em 1867. Uma carta fictícia, que teria sido escrita pela imperatriz em seu leito de morte, lhe deixa esse sentimento como herança e punição por sua insistência nas gestações seguidas de Leopoldina e por sua violência contra ela, uma mulher inteligente, sensível e carismática, que o amou verdadeiramente.
O Pedro a bordo, cujo coração vemos dissecado na tela, não é mais imperador nem rei de lugar algum. Com a segunda mulher, Amélia (a portuguesa Victória Guerra), está longe de ser o jovem fogoso de outrora: ele está impotente e não se conforma com isso. Tanto que, nos porões do navio, busca, junto aos trabalhadores negros a bordo, de múltiplas nacionalidades, alguns escravizados e outros não, remédios para os males que o perturbam. Recorre, inclusive, a um ebó, ritual do candomblé dedicado a seu orixá, Ogum.
Personagens negros
Coprodução entre Brasil e Portugal, A Viagem de Pedro tem como um de seus principais méritos humanizar o protagonista, o mergulhando em sua própria subjetividade. O filme o insere em um complexo microcosmos dentro navio inglês, no qual em muitos momentos o imperador transita pelo barco como se fosse um homem comum.
É particularmente interessante o cuidado como o roteiro trata os personagens negros, com tempo de tela, falas intrigantes e importantes papéis na narrativa. Destaco aqui dois deles.
Coprodução entre Brasil e Portugal, A Viagem de Pedro tem como um de seus principais méritos humanizar o protagonista, o mergulhando em sua subjetividade.
O primeiro é Chef (Sergio Laurentino), cozinheiro da embarcação e pai de santo, que não se curva a Pedro, quando o monarca a ele recorre em busca de ajuda para se livrar do mal da impotência. O imperador chega a suspeitar que Chef seja um malé, revoltoso contra o Império, já que o homem é altivo e confessa estudar o árabe, idioma falado pelos subversivos islâmicos que se insurgiram contra a Coroa, na Bahia.
Outra personagem interessantíssima é a escrava Dira (Isabél Zuaa), que, em um momento bastante forte do filme, conta a seus companheiros de porão como um homem pode levar uma mulher ao orgasmo, reclamando para si o seu direito ao prazer. Pedro a ouve, e parece muito interessado na lição.
Com uma narrativa fragmentada e cortes secos, alguns bastante abruptos, A Viagem de Pedro acontece dentro do navio e nas recordações do imperador, mas também no seu inconsciente, em momentos de delírio, como durante convulsões epilépticas e um quase afogamento. Não se trata de um filme fácil, solar, que enalteça seu protagonista, ou o heroicize. Muito pelo contrário: é uma obra sombria, incômoda, por vezes confusa e lenta.
Em uma intensa atuação de Cauã Raymond, confere não apenas humanidade, mas também brasilidade, a esse Pedro, muito falho, combalido, tudo menos “imbrochável’, ainda que sensual. Mas isso não o torna menos relevante, apenas mais palpável e contemporâneo para o estranho Brasil dos dias atuais.
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