Em O Acontecimento, Annie é uma jovem universitária, estudante de Letras, na França dos anos 1960. Pouco mais do que adolescente, ela está às vésperas de fazer um exame decisivo em sua jornada acadêmica quando descobre estar grávida de um namorado eventual, com quem não mantém um relacionamento muito sério ou estável. Ela não deseja ter o filho, mas o aborto é proibido no país e tanto mulheres que o fazem quanto quem as ajuda comete crime e podem acabar na prisão.
Baseado em um romance autobiográfico da escritora Annie Ernaux, O Acontecimento deu à cineasta Audrey Diwan o Leão de Ouro no Festival de Veneza 2021 e pode ser visto nos cinemas brasileiros e também na plataforma de streaming HBO Max. O prêmio foi mais do que merecido, sobretudo pelas inegáveis qualidades cinematográficas do filme. A atual cruzada conservadora que se espalha pelo mundo, no entanto, também pode ter tido seu peso na premiação.
O prêmio foi mais do que merecido, sobretudo pelas inegáveis qualidades cinematográficas do filme.
A protagonista corre contra o tempo para interromper a gravidez – a narrativa é pontuada na tela pelo número de semanas de gestação. Quando finalmente consegue quem faça o procedimento, o aborto começa na casa de uma desconhecida, passa pelo vaso sanitário do alojamento estudantil onde Annie reside e vai terminar em um hospital, aonde ela chega quase morta.
Num momento em que o direito constitucional ao aborto foi revogado pela Suprema Corte de Justiça nos Estados Unidos, O Acontecimento ganha atualidade e inegável relevância política.
Na França, a interrupção voluntária da gravidez é legal desde 1975, mas com ascensão da direita mais conservadora, a discussão do tema torna-se mais e mais relevante, inclusive entre nós, até porque o longa de Diwan é muito contemporâneo na forma, apesar de a trama se passar nos anos 1960.
Annie, vivida com intensidade contida pela franco-romena Anamaria Vartolomei, vencedora do César (prêmio máximo do cinema francês) de atriz revelação, é acompanhada por uma câmera intimista, que mostra cada passo da personagem e nos coloca muito perto de seu drama. Seu dilema, consequência direta de sua vontade de ser livre, ter um futuro, e não se submeter a regramentos sociais ou religiosos, é tratado com sobriedade, o que não esvazia a potência dramática do filme.
O Acontecimento lembra, em certa medida, o norte-americano Nunca, Raramente, às Vezes, Sempre, longa-metragem vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim de 2020. Escrito e dirigido pela cineasta Eliza Hittman (do elogiado Ratos de Praia), o filme tem como protagonista Autumn (a revelação Sidney Flanegan), uma garota de 17 anos, estudante secundária que, ao ir a uma clínica em sua pequena cidade, localizada no interior da Pensilvânia, descobre estar grávida e encontra forte resistência quando dá a entender que sua opção é pelo aborto, legal no seu estado, porém condenado pelos profissionais que a atendem, que tentam dissuadi-la a todo custo.
O drama se passa nos dias atuais, mas sua Via Crucis se parece bastante com a de Annie em O Acontecimernto.
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