Os horrores mais profundos da história não se limitam à brutalidade dos atos cometidos, mas na facilidade com que a violência é executada por agentes anônimos, invisíveis, escondidos sob o manto de sistemas opressivos que perpetuam injustiças e permanecem impunes. Esses rostos ocultos operam nas sombras, apagando suas vítimas da consciência pública. Em Ainda Estou Aqui, Walter Salles, um dos cineastas brasileiros mais reconhecidos internacionalmente, conduz essa reflexão de forma magistral.
Conhecido por seu estilo sensível e seu olhar humanista, Salles, que já nos deu obras marcantes como Central do Brasil e Diários de Motocicleta, explora aqui as cicatrizes deixadas pela ditadura militar no Brasil, especialmente naqueles que foram obrigados a viver em um luto perpétuo por seus entes desaparecidos.
Baseado no livro homônimo de memórias de Marcelo Rubens Paiva, o filme vai além de uma crônica histórica e se transforma em um relato intimista sobre a dor do esquecimento e a luta pela justiça. A ausência de respostas não é apenas um tema que atravessa a narrativa, mas um fio condutor pulsante que permeia cada cena, gerando uma sensação de desamparo crescente. Contudo, ao contrário de muitos dramas históricos, Ainda Estou Aqui não se entrega à desesperança completa. Salles, fiel à sua assinatura, preenche a narrativa com uma humanidade palpável e visceral, presente nos pequenos detalhes da vida cotidiana e nos gestos mais silenciosos.
O cineasta nos faz lembrar que, mesmo diante de uma crueldade invisível, são os rostos daqueles que resistem, que sobrevivem e lutam, que permanecem gravados na memória. A dor do invisível – da violência que acontece nas sombras, fora do campo de visão – contrasta com a trágica poesia de acompanhar uma mulher que devota sua vida a uma busca incansável por justiça, ainda que essa justiça permaneça sempre fora de alcance.
Fernanda Torres entrega uma interpretação comovente, dando vida a cada revés e esperança que Eunice experimenta. Sua atuação é marcada por uma contenção emocional que amplifica o sofrimento silencioso da personagem.
A jornada de Eunice, interpretada de forma brilhante por Fernanda Torres, começa de maneira serena. A primeira vez que a vemos, ela está nadando nas águas tranquilas da praia do Leblon, em 1971. A cena, aparentemente calma, carrega em si uma tensão latente – um helicóptero sobrevoa o mar. À medida em que a narrativa avança, o mundo ao redor de Eunice parece se comprimir, sufocando-a, enquanto ela tenta, com todas as suas forças, criar um ambiente feliz para sua família.
A direção de Salles é notavelmente contida e cuidadosa. Ele não glorifica a luta de Eunice, tampouco suaviza as duras realidades que ela enfrenta. Ao contrário, Salles constrói um retrato profundamente humano e íntimo de uma mulher que, após a prisão do marido, o ex-deputado Rubens Paiva (vivido por Selton Mello), dedica-se com obstinação à busca por respostas. Esse retrato, longe de ser exagerado ou melodramático, é pintado com delicadeza, revelando uma mulher que equilibra, a duras penas, a dor pessoal e a criação dos filhos, enquanto luta contra a desinformação e o silenciamento impostos pela ditadura.
Walter Salles, conhecido por seu talento em contar histórias de personagens marginalizados e em explorar jornadas internas de transformação, repete essa fórmula em Ainda Estou Aqui, representante do Brasil na corrida por indicações ao Oscar 2025. Ele faz isso com uma sensibilidade característica, transformando a dor de Eunice e de sua família em uma narrativa universal sobre resiliência e memória.
Assim como em Central do Brasil, onde a personagem de Fernanda Montenegro se embarca em uma jornada emocional ao lado de um menino órfão, aqui, a jornada de Eunice é igualmente tocante, embora mais sutil.
Salles tem uma habilidade única para nos mostrar o extraordinário no ordinário – nos pequenos momentos de felicidade ou na persistência silenciosa de uma mulher que se recusa a aceitar o esquecimento.
O Brasil dos anos de chumbo, quando o governo militar perseguia, torturava e eliminava dissidentes, é o pano de fundo desse drama familiar. No entanto, ao contrário de outras obras que focam nos atos violentos e espetaculares da repressão, Ainda Estou Aqui encontra espaço para momentos de genuína alegria. Esses momentos, entre Eunice, seus filhos e vizinhos, são pequenos respiros em meio à crescente opressão, tornando-se ainda mais pungentes à medida que a repressão se aproxima inexoravelmente.
A prisão de Rubens é retratada com uma simplicidade devastadora. Ele se despede da família com uma calma quase resignada, talvez ciente de que este pode ser seu último adeus. O silêncio da cena é avassalador, e o impacto dessa separação reverbera por toda a narrativa. Logo após, Eunice também é levada pelas forças do regime, sendo submetida a 12 dias de interrogatórios e intimidações, para em seguida ser libertada sem respostas.
Ao retornar, a realidade que a aguarda é ainda mais desoladora. Sem o marido e sem informações sobre o paradeiro dele, Eunice se vê sozinha, criando cinco filhos sob a constante vigilância do regime. Sua vida se transforma em uma missão incansável: descobrir o que aconteceu com Rubens e tantas outras vítimas da ditadura. Nesse ponto, o filme se aprofunda ainda mais no cotidiano de uma mulher que, embora devastada, se recusa a desistir.
‘Ainda Estou Aqui’: contenção emocional
Fernanda Torres entrega uma interpretação comovente, dando vida a cada revés e esperança que Eunice experimenta. Sua atuação é marcada por uma contenção emocional que amplifica o sofrimento silencioso da personagem. Não há grandes explosões de dor ou desespero. Em vez disso, Torres transmite a devastação de Eunice nos pequenos gestos – um sorriso forçado em uma foto de família, a resignação em seu olhar, a força silenciosa de continuar lutando quando tudo parece perdido.
O roteiro, assinado pelos paranaenses Murilo Hauser e Heitor Lorega, foge dos clichês típicos de narrativas sobre regimes autoritários. Não há simplificações melodramáticas. Ao invés disso, a história de Eunice é tratada com uma sensibilidade que reconhece a complexidade emocional de quem vive sob um regime de repressão. A vida de Eunice não é marcada por grandes eventos, mas pelos pequenos gestos de resistência que raramente são reconhecidos.
A grande conquista de Ainda Estou Aqui está em capturar essa sensação de incerteza constante, enquanto constrói um retrato profundamente humano dos personagens. Cada filho de Eunice enfrenta seus próprios desafios, adicionando camadas de profundidade emocional à trama.
Ao final, quando fotos e vídeos da família se entrelaçam, o filme revela os rostos que realmente importam: os de Eunice e de todos aqueles que ela amou e por quem lutou incansavelmente. A jornada de Eunice não é apenas sobre o passado, mas sobre como a memória e a dor moldam o futuro. Walter Salles, mais uma vez, nos oferece uma obra de rara beleza, sensível e profundamente humana, que nos lembra da importância de nunca esquecer aqueles que foram apagados pelas sombras da história.
Ainda Estou Aqui se baseia nas memórias de Marcelo Rubens Paiva, escritor e dramaturgo cujo trabalho reflete intensamente sobre as feridas deixadas pela ditadura militar no Brasil. Nascido em 1959, Marcelo abordou a ausência de seu pai e o sofrimento de sua família em diversos de seus trabalhos literários, como em Feliz Ano Velho (1982), seu livro de estreia, que narra suas experiências de juventude, o desaparecimento de Rubens Paiva e um acidente que o deixou tetraplégico.
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