Não há nada mais poderoso no cinema do que uma narrativa bem construída que expresse uma ideia sem que necessariamente seja preciso explicitá-la. Em Arábia (2017), filme de Affonso Uchoa e João Dumans, que levou os prêmios de melhor filme (Júri Oficial e Crítica), melhor montagem, melhor ator (pelo protagonista Aristides de Sousa) e melhor trilha sonora no 50º Festival de Brasília e, recentemente, abriu a edição deste ano do Festival Internacional de Cinema da Bienal de Curitiba (FICBIC), isto é feito com plena maestria.
No longa, André (Murilo Caliari) é um adolescente que vive com a tia, enfermeira, porém constantemente é visto sozinho na pequena cidade de Ouro Preto, no interior de Minas Gerais, em uma comunidade próxima a uma indústria de ferragem. Certo dia, uma complicação de um dos trabalhadores da fábrica faz com que André tenha de ir buscar os pertences do rapaz acidentado na casa onde vive a pedido de sua tia. É aí que André, por ironia do destino, acaba esbarrando nos escritos de Cristiano (Aristides de Sousa) e somos apresentados ao nosso protagonista.
Cristiano, que havia acabado de sair da prisão, é convidado a escrever para um projeto teatral da fábrica onde trabalha. É assim, por meio da sua escrita, que acabamos nos dando conta da vida do personagem, seu caminho tortuoso em busca de uma sobrevivência que, ainda que sofrida, era repleta de nuances de amor, de romance, de diversão, de cumplicidade e de resiliência. O uso da literatura escrita como dispositivo para que se possa conhecer a vida e a narrativa de um homem comum, em que são expostas todas as suas dores e suas fraquezas, assim como suas motivações e alegrias, talvez seja um dos pontos mais fortes do filme. O personagem de Aristides de Sousa convence não necessariamente pela sua performance, mas por sua própria biografia, escrita pelo próprio personagem.
Se em Rifle (2016), de Davi Pretto, a narrativa do homem errante e solitário nos pampas gaúchos é repleta de silêncios, em Arábia o que move a história é a palavra, seja pela oralidade ou pela escrita. Não apenas o relato da experiência de vida do protagonista é exposta, mas também a poesia que permeia toda a sua jornada – e culmina numa das sequências mais tocantes do cinema brasileiro contemporâneo, certamente.
Essa abordagem intimista de um homem comum que sofre pelas precarizantes condições de trabalho a que está constantemente submetido, cerceado pelo estigma da miséria e da subalternidade, sempre em busca de um porto para se ancorar (mas, o quê? o trabalho degradante? a família em pedaços? os companheiros de jornada?), expõe arestas para uma miríade de sentimentos e uma humanidade extrema.
Em tempos de desmonte de direitos trabalhistas representar essa realidade é mais do que necessário – é uma emergência.
“Às vezes eu me sinto como um cavalo velho”, escreve Cristiano. “Queria mostrar pra todos eles que nós somos todos uns cavalos velhos”, confessa o trabalhador de chão de fábrica com relação a seus colegas de trabalho em um dos pouco momentos de reflexão que tem. A solidão de Cristiano representa muito bem a solidão do homem comum, que não trabalha para viver, mas sim que vive para trabalhar. Ainda assim, demonstra uma ponta de subversão por sua própria condição, destilando um ínfimo momento de desejo por revolução, por uma rebelião, para que não só ele acorde, mas a todos que se encontram na mesma situação e que, por conseguinte, são irmãos de uma luta invisível, dura, esfacelada.
Por um lado, o filme dialoga bastante com Central do Brasil (1998), de Walter Salles, uma vez que, de alguma maneira, a personagem de Fernanda Montenegro (Dora), também através da escrita, ao transcrever cartas para analfabetos em uma transitada estação de trem, expunha aquela realidade maçante da jornada do garoto que vai em busca do seu próprio pai no sertão nordestino. Já num aspecto mais estético, o longa apresenta bastante aspectos do próprio neorrealismo italiano: planos longos, abertos, diálogos quase que, por certas vezes, aparentemente lidos, a utilização de atores da própria região (no caso, são atores da própria “escola de Contagem”), enfim, um cinema bastante representativo da condição de vida degradante do momento pós-guerra italiano e que prossegue, especialmente em A classe operária vai ao paraíso (1971), de Elio Petri.
Num sentido mais amplo e contemporâneo, é refrescante ver um cinema dessa temática sendo produzido atualmente no Brasil: seja por Rifle, por Corpo Elétrico (2017), de Marcelo Caetano, e agora por Arábia: cada qual com a sua própria maneira de contar uma narrativa e com sua própria protagonização, porém, todos tratando de classes subalternas, seja ao latifúndio ou ao dono da fábrica. Em tempos de desmonte de direitos trabalhistas, não apenas no Brasil, mas num contexto global, representar essa realidade é mais do que necessário – é uma emergência.
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