Não se enganem, Martin Scorsese continua o mesmo! Ainda bem. Por mais que Assassinos da Lua das Flores, seu mais recente longa-metragem, se desenvolva em torno da nação indígena dos Osage, o cineasta nova-iorquino segue fiel a temas recorrentes em sua obra: crime organizado como consequência direta do capitalismo nos Estados Unidos, corrupção endêmica, culpa (ou a ausência dela) e família como um dos berços de todos esses males.
Logo no início do filme, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, os dois atores mais recorrentes e icônicos na filmografia de Scorsese, protagonizam um momento-chave na trama. De Niro, vestido com o imaculado traje branco de William Hale, rico negociante de gado, recebe o sobrinho, Ernest Buckhart, vivido por DiCaprio, um sujeito ambíguo, que oscila entre ser um idiota útil e um vigarista em busca de uma grande oportunidade.
Hale assume o papel de mentor nessa jornada do herói às avessas, perversa. Dá a Buckhart as lições fundamentais da exploração – seja ela da terra, da humanidade, ou, em última análise, do capitalismo selvagem. Esse modus operandi vale tanto para as terras de Oklahoma, no sudoeste dos Estados Unidos do início do século 20, quanto para as sagas mafiosas exploradas em outros filmes de Scorsese, como Bons Companheiros, Cassino e O Irlandês.
A cena em que Buckhart ouve atentamente seu tio descrevendo a arte de se aproveitar e lucrar com um sistema, infiltrando-o por dentro – ou seja, se aproximando dos índios Osage, enriquecidos no fim do século XIX, graças ao petróleo escondido sob a árida superfície de uma reserva – evoca outra, também protagonizada por DiCaprio em outro longa de Scorsese.
Em O Lobo de Wall Street, o personagem de Matthew McConaughey ensina ao protagonista, vivido por DiCaprio, como explorar o mundo e desfrutá-lo cada vez mais intensamente, assim como um leão rugindo, alimentando sua libido voraz, sem hesitar em “se masturbar quatro ou cinco vezes por dia”. O sexo, aqui, é usado como metáfora de poder e privilégio.
Em Assassinato da Lua das Flores, baseado no livro homônimo de David Grann, Hale também aborda a questão sexual: encoraja o sobrinho a se envolver com mulheres Osage e a casar com uma delas para recuperar mais facilmente seus direitos de homem branco sobre o tesouro natural do petróleo – mesmo que isso represente eliminar integrantes da comunidade indígena que possam atrapalhar seus planos. Afinal, Hale já vem fazendo isso há algum tempo. De Niro, é preciso dizer, está assustador como esse tio sacana.
“Oh, sim, eu gosto de mulheres! Brancas, vermelhas, azuis, gordas…”, confidencia o aprendiz ao feiticeiro, com um olhar maroto. Esse momento de confidência, esse jogo de cena e sedução entre homens que admitem até que ponto sua ganância libidinosa ocorre à custa das mulheres e da família. Esse bate-bola perverso põe em movimento o extraordinário Assassinos da Lua das Flores, uma obra-prima scorsesiana de primeira linha, ao longo de 3 horas e meia, dedicadas quase inteiramente a essa cumplicidade entre Hale, chamado de Rei na região, e seu súdito, aspirante a herdeiro.
‘Assassinos da Lua das Flores’: western e gângsteres
Assassinato da Lua das Flores é, ao mesmo tempo, um western em sua superfície e um filme de gângster em suas entranhas.
Buckhart, em um dos melhores desempenhos da carreira de DiCaprio, é um canalha em ascensão que talvez ame Mollie (a excelente Lily Gladstone, que domina suas cenas com seu silêncio e seu olhar de abismo), herdeira de uma fortuna. Mas essa ambiguidade não o impede de destruí-la, de sabotá-la. Não desprovido de culpa, ele queima tudo em seu caminho, inclusive os filhos, enquanto executa, mesmo assim, a missão recebida do tio.
Assassinato da Lua das Flores é, ao mesmo tempo, um western em sua superfície e um filme de gângster em suas entranhas. A violência latente em todo o filme surge apenas em lampejos fugazes, nunca em tiroteios épicos, como nos faroestes. Em certo sentido, de forma estratégica, os assassinatos se tornam eventos esperados, mantendo o público envolvido durante os longos períodos de drama até a próxima execução chocante – a fantástica edição de Thelma Schoonmaker é fundamental nessa envolvente costura narrativa de tensões e distensões.
A violência chega ao ápice em uma noite tumultuada pelo fogo, enquanto Ernest se dopa e tenta matar Mollie aos poucos. É quando os cowboys (homens brancos, cruéis, colonialistas) brutalmente recuperam seus direitos sobre o petróleo. Scorsese os reduz a silhuetas distantes, quase abstratas, ocupados em pilhar o solo – como se estivesse pintando uma cena rupestre. Seriam demônios?
Enquanto a maioria dos Osage é reduzida a papéis secundários, o grande cineasta apresenta o caso, uma história real, que tangencia a questão racial, predominantemente sob a perspectiva dos criminosos, similar ao que fez em Cassino, explorando as raízes de Las Vegas como um paraíso para gângsteres. Desencadearão um dos primeiros casos investigados pelo recém-criado FBI. Scorsese, afinal, sempre teve uma fascinação por corrupção, violência e negócios obscuros, e aqui não é diferente. Assassinos da Lua das Flores é, nesse sentido, exemplar, ao eviscerar uma história de ganância, racismo e crueldade. Mas é, também, bem mais do que isso.
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