É inevitável comparar Hirokazu Kore-eda, um dos grandes do cinema japonês contemporâneo, ao mestre Yasujiro Ozu (dos clássicos Era uma Vez em Tóquio e Pai e Filha), considerado o mais nipônico dos diretores da Terra do Sol Nascente. A conexão entre as obras dos dois realizadores passa pela forma – Kore-eda também é um aficionado por planos estáticos, rodados a ao nível do chão, dos tatamis -, mas, principalmente, pelo apreço de ambos por um tema: a família, como uma espécie de microcosmo da sociedade do seu país, em suas respectivas épocas.
Já em cartaz no Brasil, Assunto de Família, longa-metragem vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2018 e um dos títulos mais festejados pela crítica internacional no último ano, Kore-eda cria uma obra ao mesmo tempo desconcertante, sobretudo do ponto de vista narrativo, e muito comovente, porque questiona o modelo de família tradicional. Em 2013, com Pais e Filhos (inevitável paralelo com Ozu, que morreu em 1963), o diretor venceu o Prêmio do Júri em Cannes ao questionar a noção de paternidade biológica, discutindo a potência dos laços afetivos.
Em seu novo longa, que disputou o Globo de Ouro 2019 e é um dos nove pré-selecionados para o Oscar de melhor filme estrangeiro, o cineasta volta suas lentes sensíveis para um núcleo familiar pouco ortodoxo, marginal.
Kore-eda, talvez por expor uma realidade inimaginável em um país tão afluente como o Japão, causa tanto perplexidade quanto encantamento com seu filme, cujo roteiro, muito orgânico e nada formulaico, evita explicar demais.
Osamu (Lily Franky, de Pais e Filhos) é um trabalhador braçal que vive de bicos e lidera uma família muito atípica, cujos integrantes não são ligados, necessariamente, por laços sanguíneos. O que os une é a marginalidade, a rejeição, em uma sociedade como a japonesa, pautada por tradição, eficiência e disciplina. Todos, de alguma forma, estão do lado errado da vida certa, quebrando alguns clichês que temos de um Japão próspero e materialmente rico.
Osamu e filho (Jyo Kairi), como há pouco dinheiro, têm como prática regular, e já plena de técnicas sofisticadas, praticar pequenos furtos em supermercados e lojas de conveniência de uma grande cidade. A “mãe” (assim mesmo, com aspas, porque os papéis não são muito definidos), Nobuyo (Sakura Andô), ganha a vida em uma lavanderia e, à sua maneira, busca emprestar alguma normalidade à vida da família, que divide um minúsculo apartamento suburbano. Esse lar improvável tem o comando da “avó” Hatuse (Kirin Kiki), uma pensionista idosa que, para as autoridades do governo, deveria morar sozinha no imóvel.
O cotidiano desse clã improvável sofre uma mudança brusca, que se mostrará muito significativa, quando Osamu traz para o já entulhado apartamento a pequena Yuri (Miyu Sasaki), menina com o corpo repleto de hematomas, que, em princípio, parece também ser sua filha. A chegada da garota gera algum desconforto, mas o grupo termina por acolhê-la, lhe dando o afeto que antes não tinha. A família se reconfigura, porque, apesar de viverem na fronteira com a ilegalidade, os sentimentos que os unem são verdadeiros, a despeito de toda precariedade.
Um incidente, talvez não tão acidental quanto aparente, vai trazer à tona segredos, e algumas mentiras, colocarão em xeque a relativa estabilidade da família.
Kore-eda, talvez por expor uma realidade inimaginável em um país tão afluente como o Japão, causa tanto perplexidade quanto encantamento com seu filme, cujo roteiro, muito orgânico e nada formulaico, evita explicar demais, deixando o espectador confuso. Afinal, essas pessoas são ou não parentes? O mais tocante é perceber que todos têm o fracasso em comum e, por estarem à deriva, não soltam as mãos uns dos outros, reinventando laços afetivos que um dia perderam, quase todos de maneira cruel. A família tradicional, que Ozu, já via em transformação no Japão pós-Segunda Guerra Mundial, se reinventa através do olhar inquieto de um diretor que pulsa como poucos no seu país.
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