Em Baby (2024), o cineasta Marcelo Caetano (de Corpo Elétrico) revisita temas recorrentes no cinema, mas o faz com uma abordagem que busca revelar as complexidades sociais e emocionais da marginalidade urbana. A narrativa parte de elementos já conhecidos — a difícil reintegração social de um jovem recém-saído da prisão, a descoberta da sexualidade em um romance homoafetivo intergeracional e o simbolismo do apelido “Baby” como metáfora da perda de inocência.
No entanto, mais do que simplesmente reproduzir esses arquétipos, Caetano utiliza-os como ponto de partida para explorar as dinâmicas de poder, afeto e sobrevivência que permeiam a vida de sujeitos excluídos. Essa escolha não resulta em um filme previsível, mas em uma obra que desafia o espectador a confrontar as contradições e ambiguidades de seus personagens e contextos.
A construção estética de Baby, vencedor do prêmio de melhor filme no último Festival do Rio, subverte expectativas desde a primeira cena. Diferentemente de outros filmes que tratam da saída da prisão com tons sombrios e introspectivos, Caetano opta por uma introdução vibrante e irônica.
A banda da prisão executa uma marcha solene, mas o tom festivo contrasta com a realidade de Wellington (a revelação João Pedro Mariano), que deixa a prisão apenas para enfrentar um abandono absoluto. Seus pais desapareceram sem deixar contato, e a ausência de um responsável legal o mantém preso a um sistema que deveria tê-lo libertado. Esse contraste inicial entre a celebração e a solidão antecipa a tensão central do filme: a falsa promessa de liberdade em um contexto no qual as estruturas sociais continuam a oprimir.
A trilha sonora, assinada por Bruno Prado e Caê Rolfsen, reforça essa ambiguidade ao imprimir urgência às andanças de Wellington pelas ruas de São Paulo. Um momento emblemático ocorre quando ele observa um salão de beleza sob a chuva, sendo discretamente observado por mulheres que expressam preocupação. A câmera se aproxima lentamente de seu rosto, revelando uma expressão que sintetiza a essência do personagem: a determinação implacável de sobreviver a qualquer custo. Esse olhar silencioso encapsula a vulnerabilidade e a resistência que guiarão suas escolhas ao longo do filme.
A abordagem do trabalho sexual no filme é particularmente contundente. Baby apresenta uma visão dura e realista.
Ao ser acolhido por um grupo de queens do vogue e estabelecer uma relação ambígua com Ronaldo (o excelente Ricardo Teodoro, premiado na mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes) — um cafetão experiente que oscila entre figura paterna, amante e parceiro criminoso —, Wellington passa a habitar um espaço onde afeto e exploração se confundem. Caetano investiga essa relação com profundidade, evitando reduzi-la a estereótipos simplistas.
A dinâmica entre os dois personagens se desenvolve de forma gradual, revelando as nuances de poder, dependência e desejo que tornam esse vínculo tão instável quanto fascinante. O filme expõe, assim, como relações forjadas em ambientes de vulnerabilidade são atravessadas por tensões emocionais e sociais que desafiam categorizações fáceis.
A sexualidade em ‘Baby’
A representação da cena queer paulistana em Baby destaca-se pela complexidade e pelo olhar atento às diferentes camadas dessa comunidade. Momentos de leveza e humor surgem como respiros em meio à dureza da narrativa, como no corte abrupto que contrasta a energia vibrante dos amigos de Wellington com a previsibilidade de uma balada gay mainstream. Essa justaposição não apenas provoca risos, mas também evidencia as disparidades culturais, econômicas e sociais que coexistem dentro da própria cena LGBTQIA+.
A abordagem do trabalho sexual no filme é particularmente contundente. Baby apresenta uma visão dura e realista. Wellington, um adolescente em situação de rua e inserido no sistema de Justiça, recorre ao trabalho sexual não como escolha, mas como única alternativa de sobrevivência. Essa perspectiva ressalta as desigualdades estruturais que atravessam as experiências de trabalhadores sexuais, trazendo à tona discussões sobre classe, raça e vulnerabilidade social.
Ao fazer esse recorte, Caetano amplia a discussão sobre o tema, mostrando que o trabalho sexual não pode ser analisado de forma homogênea, pois é profundamente impactado pelos contextos individuais de quem o exerce. O diretor conduz a história a um desfecho coerente e emocionalmente autêntico. O final é sensível, tocante, e dialoga com a trajetória de um protagonista marcado pela luta constante por pertencimento e sobrevivência.
Baby é uma obra que transcende os clichês narrativos ao investir em uma análise profunda das relações humanas em contextos de exclusão. Marcelo Caetano entrega um filme que, por meio de uma estética sofisticada e de personagens complexos, provoca reflexões sobre poder, afeto e sobrevivência. A partir de uma narrativa densa e multifacetada, o diretor questiona as estruturas sociais que moldam (e limitam) as trajetórias daqueles que vivem às margens.
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