O cinema do polêmico Woody Allen, quando acerta, tem uma qualidade rara. Muitos de seus grandes filmes – e eles não são poucos – têm algo a oferecer a diversos tipos de espectadores, e talvez seja esse seu maior e mais subestimado mérito. Tanto àqueles que buscam apenas uma história bem contada, com começo, meio e fim, e bons atores, quanto aos que procuram discussões mais profundas sobre a condição humana, e narrativas ousadas do ponto de vista formal, algo que o diretor é capaz de fazer até mesmo em tramas aparentemente simples. Blue Jasmine, mais um filme que recomendo para esta quarentena, é exemplar nesse sentido: é, ao mesmo tempo, despretensioso e brilhante.
A premissa do roteiro, à primeira vista, parece saída de um melodrama, ou de uma telenovela. Jasmine (Cate Blanchett, premiada com o Oscar de melhor atriz por sua brilhante atuação) é a encarnação do escapismo e da futilidade. Abandonou a faculdade de Antropologia para viver uma vida de opulência ao lado do marido Hal (Alec Baldwin), um milionário investidor do ramo imobiliário, que, na ressaca da crise econômica de 2008, vê seu mundo desabar quando a polícia descobre suas muitas falcatruas – não cabe aqui revelar como.
Ao dialogar intertextualmente, e não plagiar, com a peça de Williams, Allen atesta a atemporalidade do texto original, trazendo-o com vigor para os dias atuais.
Com uma mão na frente e outra atrás, Jasmine recorre à irmã, a simplória Ginger (Sally Hawkins, de A Forma da Água), de quem sente vergonha, e se muda de Nova York para São Francisco, com o intuito de iniciar uma nova vida. No fundo, acredita que sua derrocada é passageira e, mais cedo ou mais tarde, ela estará de volta à alta sociedade. Porque assim está escrito. “Ela tem genes melhores”, repete Ginger mais de uma vez.
O argumento de Blue Jasmine tem como referência, nem um pouco camuflada por Allen, um clássico da dramaturgia norte-americana: O Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. A referência é tão evidente que o diretor escalou para o papel-título Cate Blanchett, atriz que viveu no palco o papel de Blanche DuBois, que também deu a Vivien Leigh o Oscar de melhor atriz no filme Uma Rua Chamada Pecado (versão da peça para o cinema assinada por Elia Kazan, que também havia dirigido a montagem original nos palcos). Como Jasmine, Blanche é uma mulher que, depois de perder tudo, “depende da caridade de estranhos”.
Ao dialogar intertextualmente, e não plagiar, com a peça de Williams, Allen atesta a atemporalidade do texto original, trazendo-o com vigor para os dias atuais. A incapacidade de lidar com a realidade de Jasmine não está circunscrita a um recorte temporal, e se transfigura no esplêndido roteiro de Allen.
O delírio de Jasmine, que chega a contagiar Ginger, uma mulher pé no chão, é profundamente humano e, por isso, consegue provocar certa empatia, que se esvai, à medida que, como acontece com a anti-heroína de O Bonde Chamado Desejo, a personagem não está na rota da redenção.
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