A protagonista do fascinante drama sueco Border, do cineasta iraniano Ali Abbasi (de Shelley) é uma mulher peculiar. Funcionária da alfândega em uma cidade portuária, onde desembarcam muitos navios, Tina tem uma função bastante específica: ela consegue, literalmente, farejar quando algum passageiro esconde algo ilícito, suspeito. Seu olfato muito desenvolvido é capaz de detectar medo, ansiedade, culpa e outros sentimentos humanos que passariam indetectados por alguém que não tivesse esse sentido tão afiado. Ainda que silenciosa, introvertida, ela também chama a atenção por sua aparência física. É atarracada, tem a testa protuberante, dentes muito irregulares, cabelos sempre em desalinho. Esses traços a tornaram vítima fácil de preconceito e abuso desde a infância.
Um dos muito méritos de Border é discutir, por meio de Tina, vivida pela extraordinária Eva Melander (irreconhecível) não apenas padrões estéticos, muitas vezes cruéis, mas também a dificuldade que a sociedade – e aqui pouco importa a geografia – tem de aceitar o diferente, o que desafia as normas. Útil, a personagem é valorizada por suas habilidades extraordinárias, mas nem por isso deixa de ser uma pária. Vive isolada em uma casa escondida na floresta. Tem como companheiro Roland (Jörgen Thorsson), um criador de cães de guarda com quem mantém uma relação sem sexo – ela acredita ter a genitália deformada.
Abbasi conduz a narrativa com enorme personalidade. Sua câmera é orgânica, por vezes muito tensa mas também onírica em alguns momentos.
Capaz de detectar desde adolescentes que entram no país trazendo bebidas alcoólicas até pedófilos transportando pornografia infantil, Tina um dia é surpreendida por Vora (Eero Milonoff), um homem que carrega consigo insetos e cuja aparência física e comportamento se assemelham bastante aos dela. A atração entre os dois é imediata e, após alguns incidentes, os dois acabam se aproximando e se apaixonando. Mas alerta: Border não é extamente uma história de amor.
Abbasi conduz a narrativa com enorme personalidade. Sua câmera é orgânica, por vezes muito tensa mas também onírica em alguns momentos. A trama de Border, com a chegada de Vora, sofre uma grande reviravolta, que não cabe aqui revelar. Mas vale dizer que a narrativa assume contornos surpreendentes de realismo mágico, transformando-se em uma fábula na fronteira entre a fantasia e o terror, para discutir temas muito contemporâneos como identidade de gênero (Tina e Vora não são exatamente o que aparentam) e preconceito contra minorias.
Vencedor da mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar), no Festival de Cinema de Cannes de 2018, Border é um daqueles filmes dos quais se sai entre o encantamento e a perplexidade. Desde já, esta na lista dos melhores lançamentos deste ano.
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