A história de Capitu e Bentinho em Dom Casmurro é uma espécie de mito fundante na literatura brasileira. 124 anos depois de vir ao mundo, a mais célebre obra de Machado de Assis continua inquietando e inspirando outros artistas a gerar suas próprias interpretações. E é possível que Capitu e o Capítulo, filme de Julio Bressane, esteja entre as adaptações mais inventivas.
Isto porque o veterano cineasta não se propõe necessariamente a contar a obra a um novo público, mas sim explorá-laenquanto ambiente e enquanto estética, que se concretizam a partir de cenas soltas centradas em cinco personagens: Capitu (Mariana Ximenes), Bentinho jovem (Vladimir Brichta), Bentinho mais velho, já como Casmurro (Enrique Diaz). Há, por fim, um segundo casal que se pareia aos protagonistas: Sancha (Djin Sganzerla) e um homem sem nome e sem voz (Saulo Rodrigues), que se imagina ser Escobar.
Julio Bressane não se interessa nem em ser didático, nem em ser excessivamente “respeitoso” (na falta de uma palavra melhor) com o clássico de Machado de Assis.
Juntos, eles entram em cenas que anexam em Dom Casmurro um aspecto teatral e imagético. Os sentidos se constroem menos no texto proferido pelos atores, e mais nos elementos que vão se entrelaçando: a presença de flores, as texturas, a ênfase em certas tonalidades (como o roxo, que remete à ideia do “roxo de ciúmes”), a remissão permanente às artes plásticas.
Essa última, inclusive, se repente constantemente desde uma das primeiras cenas, em que Capitu pinta com um lápis o semblante de Bentinho numa parede. Em certos momentos, o homem paranoico, que é atormentado pelo medo de que seu filho seja do amigo, vê-se enlouquecer enquanto anda sem rumo na casa, com seu rosto em close sendo abraçado pelos braços, claramente em uma remissão ao quadro “O Homem Desesperado”, de Gustave Coubert.
Ao mesmo tempo, a sensorialidade também é explorada. Bentinho jovem – certamente, o personagem mais interessante do longa, em uma interpretação divertida de Brichta – é mostrado tendo uma espécie de enjoo, enquanto a câmera treme, como se estivéssemos mergulhados em água.
‘Capitu e o Capítulo’: flerte com o teatro
Como fica claro, Julio Bressane não se interessa nem em ser didático, nem em ser excessivamente “respeitoso” (na falta de uma palavra melhor) com o clássico de Machado de Assis. Quem procurar o filme, por exemplo, para descobrir a essência de Dom Casmurro, provavelmente sairá frustrado.
A ideia aqui é apresentar uma experiência estética – que não deve agradar a todos. Clama-se em Capitu e o Capítulo por um espectador capaz de se desvencilhar a certos parâmetros estabelecidos ao cinema, para que se possa tentar desfrutar de uma obra híbrida, situada em um ponto limítrofe com o teatro. Mas, ainda assim, um teatro menos voltado ao narrativo, e mais à fruição pura dos sentidos, na medida que isso pode ser possível.
Ou seja, pode não ser para todos os paladares. Isto já transparece no nome do filme. No material de divulgação, Julio Bressane esclarece que tirou o título de um poema que viu, em 1984, o poeta Haroldo de Campos declamar: “O importante no Dom Casmurro não é a Capitu, mas o capítulo…”. Como um novo capítulo proposto a uma obra fechada, Capitu e o Capítulo ousa testar as possibilidades de novos caminhos para um dos dramas mais conhecidos de todos os tempos.
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