Ana (Snezana Bogdanovic) é uma mulher onipresente no drama sérvio Cicatrizes (2020). Ela aparece praticamente em todas as cenas desta produção de pouco mais de noventa minutos. O filme é ela. O filme é Ana, com seu ar constantemente grave, preocupado, depressivo, mas, ao mesmo tempo, capaz de evidenciar uma mulher muito decidida, bastante firme e convicta em encontrar o filho dado como morto no nascimento, há vinte anos. Um dos principais motivos da dúvida é o fato de ela nunca ter encontrado o túmulo onde o recém-nascido teria sido sepultado.
Cicatrizes é Ana, mas não apenas. Cicatrizes é, também, o roteiro. Protagonista e roteiro são a base sobre a qual se sustenta toda essa produção, dirigida por Miroslav Terzic. A personagem principal merece destaque graças às expressões faciais contidas da atriz que a interpreta e do uso também contido do corpo, sempre apresentado como reprimido, preso: uma materialização imagética da alma da personagem. E o destaque do roteiro de Elma Tataragic cabe ao fato de ele ampliar o grau de envolvimento do espectador nesse processo de busca incansável de uma mãe por seu filho, com uma cena final que é, na mesma proporção, extremamente simples e simbólica, profundamente rápida e cheia de sentido.
Snezana Bogdanovic faz uso quase que exclusivo do olhar para evidenciar para as telas a dor suprema de uma mãe que nunca aceitou a versão oficial dos fatos.
Snezana Bogdanovic faz uso quase que exclusivo do olhar para evidenciar para as telas a dor suprema de uma mãe que nunca aceitou a versão oficial dos fatos. Essa mulher de poucas palavras, em um dos raros momentos de fala, deixa claro o que deseja: “a verdade”.
Mesmo que para isso passe a receber gradualmente o rótulo de insana por parte de todos que a cercam. Inclusive daqueles que ama, como o marido Jovan (Marko Bacovic) e a filha, Ivana (Jovana Stojiljkovic).
Ivana, aliás, demonstra, em certo momento, a carência e a dor de conviver com uma mãe que, aparentemente, deixou de lado a filha viva para preocupar-se com um filho pretensamente morto.
Por um lado, esse comportamento da protagonista pode representar um amor que beira o patológico. Tanto que afeta negativamente a maior parte das outras personagens com as quais ela interage. Por outro lado, no entanto, abandonar o caso policial pode representar o silêncio diante de uma injustiça.
É por esse segundo motivo que Ana insiste, luta, teima, cai, levanta e segue implacável, inexorável em sua busca. Ela acredita profundamente que seu filho foi, na verdade, vendido ilegalmente para adoção em meio a um esquema mafioso que até hoje funciona na Sérvia.
A história apresentada neste filme, aliás, é baseada em fatos reais e foi concebida como uma homenagem às famílias da Sérvia que sofrem com o drama dos filhos desaparecidos graças a esse esquema fraudulento. Saber disso torna a experiência de acompanhar ao filme ainda mais intensa.
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