O ator e cineasta irlandês Kenneth Branagh fez história no fim dos anos 80 ao estrelar e dirigir uma vigorosa adaptação de Henrique V, peça teatral de William Shakespeare. O filme lhe valeu indicações ao Oscar de melhor ator e direção. A crítica chegou a compará-lo ao mestre britânico Lawrence Olivier, que havia transposto para o cinema a mesma obra em 1944.
Passado mais de um quarto de século, Branagh, que ainda filmaria suas versões de Muito Barulho por Nada (1993) e Hamlet (1996), outros clássicos shakespearianos, já não tem hoje seu nome automaticamente relacionado ao do dramaturgo. Aos 54 anos, vem reinventando sua carreira carreira como realizador contratado em grandes produções hollywoodianas, entre elas Thor (2011) e Cinderela, atualmente em cartaz nos cinemas brasileiros. O filme é um grande êxito de bilheteria, tendo ultrapassado a arrecadação de US$ 350 milhões em todo o mundo.
A Cinderela de Branagh parece dar um passo atrás nessa tendência de modernização dos contos de fadas, investindo num tom assumidamente retrô, conservador até, ainda que o filme seja muito bem realizado e dramaticamente até mais eficiente do que as novas versões de outros contos infantis.
O surpreendente é que justamente Branagh, que em Hamlet inovou, ao transportar a ação da tragédia de Shakespeare da Dinamarca medieval para o século 19, a aproximando da estética da Rússia imperial, tomou pouquíssimas liberdades na transposição cinematográfica do conto de fadas do francês Charles Perrault, mantendo-se também bastante fiel à animação clássica, produzida por Walt Disney em 1950.
Cinderela vai na contramão do que tem sido feito, com enorme sucesso, em Hollywood nos últimos anos: releituras, muitas vezes alterando os enredos de histórias infantis consagradas, como Branca de Neve (em Branca de Neve e o Caçador, 2012) e A Bela Adormecida (Malévola, 2014). Nesses dois exemplos, tanto as heroínas quanto suas algozes foram repaginadas, fortalecidas dentro das tramas, nas quais os personagens masculinos, sobretudo os dos chamados “príncipes encantados”, foram esvaziados, deixados em segundo plano, perdendo a função de salvadores, responsáveis pela resolução dos conflitos.
A Cinderela de Branagh, também produzida pelos Estúdios Disney, parece dar um passo atrás nessa tendência de modernização dos contos de fadas, investindo num tom assumidamente retrô, conservador até, ainda que o filme seja muito bem realizado e dramaticamente até mais eficiente do que as novas versões de outros contos infantis. A história da jovem órfã Ella (Lliy James, a Lady Rose do seriado Downton Abbey), martirizada pela madrasta arrivista (Cate Blanchett) e suas filhas, mantém-se intacta. Até mesmo a figura da Fada Madrinha (Helena Bonham Carter) não foi alterada e continua a transformar abóboras em carruagem e ratinhos e lagartos em cavalos e cocheiros, respectivamente.
Loira, doce e delicada, Cinderela não avançou no tempo. Sua grande virtude continua sendo a bondade, e a paciência de esperar, passivamente, que uma justiça fora de seu alcance a redima: materializada sob a forma de magia, e não de enfrentamento ou esforço pessoal. E a recompensa por todo o sofrimento que lhe foi foi imposto vem na figura do Príncipe (Richard Madden, do seriado Game of Thrones) e de seu amor, que por ela se encanta e não mede esforços para encontrar a dona do sapatinho de cristal perdido durante a inescapável fuga do baile. A madrasta e suas filhas feiosas, encarnações do mal e da inveja, são ruivas, infernais. E punidas exemplarmente no desfecho da trama, ainda que perdoadas pela protagonista, dona de um coração imaculado.
Ao reafirmar clichês de feminilidade, mantendo a heroína Cinderela em seu devido lugar, virginal e sem maldade, o filme de Branagh é um exemplo castiço de conformidade, apesar das inegáveis qualidades artísticas e técnicas do filme.
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