Se a trama de O Clã, mais recente longa-metragem do diretor argentino Pablo Trapero, em cartaz desde ontem nos cinemas brasileiros, não fosse baseada em fatos reais, muitos diriam que é inverossímil, fantasiosa demais. O filme, que se tornou um fenômeno de bilheteria em sua terra natal, reconstitui fatos ocorridos na província de Buenos Aires no início da década de 1980, quando a ditadura militar, uma das mais sangrentas do continente sul-americano, dava seus últimos suspiros, e o lento processo de redemocratização começava a trilhar seus primeiros passos.
O longa-metragem, que deu a Trapero o prêmio de melhor direção no Festival de Veneza deste ano, pode ser lido de várias formas, e isso talvez explique a sua popularidade doméstica.
Ao mesmo tempo em que não deixa de ser um drama histórico, com fortes elos com a história política argentina recente, também é um misto de thriller e filme de gângster, com visível influência formal e temática do cinema de Martin Scorsese, de quem Trapero é fã confesso. E como na obra do diretor de Taxi Driver e Os Bons Companheiros, há também no tratamento dado à história um forte subtexto de discussão moral, como foco nas relações familiares.
O filme, que se tornou um fenômeno de bilheteria em sua terra natal, reconstitui fatos ocorridos na província de Buenos Aires no início da década de 1980, quando a ditadura militar, uma das mais sangrentas do continente sul-americano, dava seus últimos suspiros.
O personagem central de O Clã é Arquímedes Puccio (o excelente Guillermo Francella), advogado, contador e ex-agente do Serviço de Inteligência da Argentina que, na fachada, aparenta levar uma vida ordinária, ao lado da família no pacato município de San Isidro. Ninguém sabe que sua casa, uma típica residência suburbana de classe média, é o quartel-general de uma rede de sequestros, que ocorreram ao longo dos anos de ditadura.
Arquímedes e sua gangue, da qual participava um dos filhos, o relutante Alejandro (Peter Lanzani), tinha como vítimas pessoas de seu círculo de convivência, o que tornava os Puccio mais insuspeitos ainda. Para piorar, os sequestrados eram mantidos em cativeiro dentro da casa da família, por vezes em um cômodo contíguo aos quartos de seus filhos mais jovens.
Quem acompanha de perto o cinema de Trapero, diretor de obras como Mundo Grúa (1999) e Leonera (2008), talvez estranhe que o diretor tenha se distanciado de sua abordagem intimista, com influência do neorrealismo italiano, e abraçado uma narrativa como a de O Clã, mais grandiloquente e com traços visivelmente hollywoodianos. Essa percepção, contudo, pode ser um tanto apressada e, em alguma medida, enganosa.
Mais do que fazer o seu O Poderoso Chefão, clássico absoluto de Francis Ford Coppola, ou o já citado Os Bons Companheiros, Trapero parece brincar, enquanto referências fílmicas, com recursos narrativos desses filmes, como a montagem paralela (impressiona uma sequência em que Alejandro faz amor com a namorada ao mesmo tempo em que um dos sequestrados é violentamente torturado), a quebra de linearidade cronológica (os tempos de ação vêm e vão no tempo) e os planos-sequência (um deles rodado no interior da casa dos Puccio, rumo ao cárcere de um refém, é emblemático).
Também instigante é a opção por uma trilha de sonora quase inteiramente formada por canções em língua inglesa, o que empresta à trama um certo tom de ironia – Alejandro é praticante de rúgbi, seu irmão mais velho vive na Nova Zelândia e os personagens mais jovens, imersos em um estado de alienação, parecem fingir não viver em um país que passa por um regime de exceção, uma guerra (das Malvinas) e um estado de violência latente, mas sempre prestes a eclodir.
Outro aspecto nevrálgico do filme de Trapero é a relação entre pai e filho, Arquímede e Alejandro. A interpretação sutil de Francella aos poucos vai revelando que, por trás da afável aparência do patriarca, se esconde um homem com traços de psicopatia que manipula e oprime seu filho; o rapaz tenta, em vão, escapar da imensa sombra projetada pela figura paterna, mas acaba engolido por ela.
Essa relação perversa, de certa forma, é uma espécie de alegoria da relação entre o governo militar e a nação argentina. Ainda mais quando nos damos conta de que Puccio, que atuou na caça de militantes de esquerda, contava com a proteção (e patrocínio) dos homens de farda.
Representante da Argentina na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, O Clã talvez seja uma trama regional demais para a Academia, ao contrário de Relatos Selvagens, de Damián Szifrón, indicado ao prêmio neste ano. Mas é um filme e tanto, que segue ecoando após o término da sessão.
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