Em sua pesquisa sobre a domesticação dos corpos na segunda metade do século XX, o teórico francês Michel Foucault levantou a hipótese de que o mundo moderno moldava os corpos e suas respectivas ações mediante condutas disciplinadoras de acordo com a necessidade do convívio social. É sob este aspecto que muito da história ocidental tem como base um ascetismo exacerbado em prol da produção em massa, pautado na repressão ao instinto e ao prazer. O abandono do instinto é o que leva à instauração da razão, do dever e da vida na cidade, que, por sua vez, conduz o indivíduo ao império da divisão do trabalho, da rotina e do individualismo.
Mas, afinal, o que isto tudo tem a ver com Corpo Elétrico, filme com uma temática predominante LGBTQI+? Simplesmente tudo. No filme, o paraibano Elias, gay e migrante, mora em São Paulo e trabalha em uma fábrica de confecção de roupas. Ao longo do seu cotidiano como trabalhador, o jovem concilia as suas amizades (que, basicamente, são todas do mesmo círculo social do trabalho) e o sexo com outros homens. Neste ínterim, é possível notar como o protagonista acaba traçando boa parte da sua vida em prol do seu emprego: seja suas relações pessoais ou mesmo suas aspirações.
Em certa parte do filme, o supervisor de Elias o chama em seu escritório e lhe aconselha a não se aproximar tanto de seus colegas de trabalho, deixando de lado as relações pessoais que mantinha para que pudesse produzir mais. Num universo em que se trabalha diariamente em chão de fábrica por 8 horas ao dias, às vezes até 12 horas, dependendo da demanda, limitar os relacionamentos em prol da produção é algo que Foucault provavelmente não se surpreenderia. Mesmo assim, o paraibano continua a ter relações e a viver sua sexualidade de maneira espontânea, como sempre fez, apesar das exigências do trabalho.

Por outro lado, na narrativa também há o ex-namorado de Elias, aparentemente mais bem de vida, pesquisador acadêmico e bastante mente aberta. A principal e mais visível característica entre os personagens – e que, ao fim, irá degringolar, inclusive, no destino do próprio Elias – é a quantidade de tempo livre que um tem enquanto o outro não tem. Se enquanto Elias passa boa parte do seu tempo livre descobrindo outros corpos como uma maneira de saciar a vontade que a rotina na fábrica o obriga a ter, o seu ex não vive essa mesma realidade (embora, em algum momento, se tenha a impressão de que ele tenha plena consciência disso).
Ao tratar sobre sexualidade, é incontável o número de longas que abordam principalmente a questão da aceitação e da diversidade destes indivíduos perante a sociedade (o que, mais do que nunca, tem a sua devida importância no hall de debates). No entanto, muito pouco se fala sobre o mundo periférico, aquele que não pode se dedicar ao luxo do prazer e do ócio por conta de um status quo de subordinação. É louvável que um filme brasileiro segmente de maneira mais nítida o universo gay e trans periférico como um modo de retratar essa realidade um tanto esquecida.
Corpo Elétrico mostra que no mundo LGBTQI+ há mais contrastes e nuances do que se possa imaginar.
O mineiro Marcelo Caetano, antes de escrever e dirigir o seu primeiro filme, percorreu uma trilha bastante consolidada na temática: dirigiu os curta-metragens Bailão (2009), Verona (2013), com a icoônica drag queen Pantera, e Blasfêmea (2017), este último codirigido com a MC Linn da Quebrada. Foi co-roteirista e assistente de direção de Mãe só há uma (2016), belíssimo filme de Anna Muylaert, assistente de direção de Boi Neon (2015), filme de Gabriel Mascaro, produtor de elenco de Aquarius (2016), do renomado Kleber Mendonça Filho, e diretor de assistente de Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda.
Por esse currículo já se entende bem qual o viés do universo LGBTQ o diretor iria rumar em seu primeiro longa: algo mais politizado e engajado. É incrível imaginar como na última década a diversidade no cinema brasileiro pautou tantos longas: desde Hoje eu quero voltar sozinho (2014) até Meu corpo é político (2017), de Alice Riff, filme que, inclusive, chegou a ganhar a Mostra Competitiva do Festival Internacional Olhar de Cinema, em Curitiba, e que também conta com a participação da MC Linn da Quebrada.
Se em 2009 um dos únicos filmes nacionais que despontou no cenário que versava sobre diversidade foi Do começo ao fim (2009), de Aluizio Abranches, um fraco e controverso romance entre dois irmãos que protagonizavam mais uma polêmica do que necessariamente a temática LGBTQI+ em si, os últimos anos mostraram que há muito mais facetas e nuances a ser abordados do que se possa imaginar.
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