Um dos grandes sucessos do pop rock brasileiro nos anos 1980, a canção “Eduardo e Mônica”, da banda Legião Urbana, lançada no álbum Dois (1986), foi sendo, com o passar das décadas, deixada um pouco de lado pelos fãs mais inflamados. Talvez por ser menos política, crítica ou depressiva, e mais otimista do que a maior parte do repertório do grupo, liderado por Renato Russo.
Por conta disso, a notícia de que a música se tornaria um longa-metragem inspirado pela história de amor que sua letra conta, pelo menos para mim, não chegou a ser motivo de maior entusiasmo. Confesso que minha primeira reação foi de ceticismo e receio de que o resultado fosse anacrônico e ingênuo demais. Provavelmente por conta desse medo que o filme Eduardo e Mônica, agora no cardápio da plataforma de streaming Globoplay, tenha sido uma agradável surpresa.
Ainda que seja até fiel à canção que o originou, o longa não é reverente e tampouco nostálgico. Embora sua trama se passe na década de 1980 e seja repleta de referências histórico-culturais da época, consegue falar de política sem derrapar em um tom panfletário e, sobretudo, conta uma história dramaticamente consistente e encantadora.
Quem assina a direção de Eduardo e Mônica é René Sampaio, também responsável pela adaptação para o cinema de outro sucesso da Legião, “Faroeste Caboclo”. A transposição, desta vez, resulta mais orgânica e bem-sucedida, contudo. É interessante que o roteiro, ainda que seja muito fiel à canção, consegue emprestar tridimensionalidade dramática aos personagens-título, que vão além do que os versos sugerem.
Há momentos em que duvidamos que a história de amor entre os dois protagonistas possa levar a algum lugar.
Eduardo, vivido pelo ótimo Gabriel Leone, que em breve estará no drama automobilístico Ferrari, de Michael Mann, é um adolescente de 16 para 17 anos. O rapaz vive em Brasília com o avô (Otávio Augusto), um militar reformado que exalta a ditadura, e com quem joga futebol de botão, como diz a canção. Às vésperas do vestibular, o rapaz não sabe o que deseja da vida. Bem diferente de Mônica, interpretada por Alice Braga, atriz que hoje vive e trabalha nos Estados Unidos.
A protagonista não é uma menina, mas uma mulher de 20 e tantos anos. Estudante de Medicina, ela vive sozinha no que era antes o ateliê do pai, artista visual que foi exilado durante a ditadura militar e morre pouco antes da trama do filme iniciar. Politizada e também com arroubos artísticos, Mônica conhece Eduardo meio ao acaso durante uma festa em que ela está fazendo uma performance, ainda mergulhada no luto.
Mônica e Eduardo não poderiam ser mais diferentes. Mas o encontro entre eles é algo mágico, e o filme, a despeito de todos os contrastes evidentes que os separam, consegue nos convencer dessa paixão. Sim, ela ama a Nouvelle Vague e ele assiste a novelas. Ela fala alemão, ouve rock inglês enquanto ele prefere o pop que ouve no rádio – a sequência em que Eduardo canta para ela a balada “Total Eclipse of the Heart”, da britânica Bonnie Tyler, é um das mais tocantes no cinema brasileiro dos últimos tempos.
Há momentos em que duvidamos que a história de amor entre os dois protagonistas possa levar a algum lugar. O jantar de Natal em que, após o avô de Eduardo defender o regime militar, Mônica se levanta e vai embora depois que contar a eles que seu pai foi perseguido pelo regime, é um deles – e soa espantosamente atual em 2022. Outro é a viagem do casal à Chapada dos Veadeiros, em Goiás, durante a qual Eduardo fica sabendo que a namorada pretende se mudar para o Rio de Janeiro, informação que ela havia compartilhado com seus amigos e não com ele.
Eduardo e Mônica estão em descompasso, como a canção sugere nos seus versos.
Com uma reconstituição de época que nunca “grita”, na qual direção de arte, figurinos, fotografia e trilha sonora nos transportam ao passado sem abusar do saudosismo, o longa-metragem de René Sampaio, que tem Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, como um de seus produtores, é muito sensível, delicado, ao falar do Brasil que já foi, mas que, de certa maneira, ainda é. De contrastes, conflitos, mas também possíveis conciliações.
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