O musical e o melodrama são gêneros cinematográficos populares e singulares, dotados da capacidade quase mágica de amplificar emoções e conflitos a tal ponto que ultrapassam os limites do cotidiano, transformando-se em reflexões profundas sobre a natureza humana. Em Emilia Pérez, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2024 e representante da França na corrida pelo Oscar 2025, o cineasta Jacques Audiard (de O Profeta) se lança à ousada tarefa de entrelaçar essas duas formas narrativas para criar uma história que, à primeira vista, parece abarcar tanto extravagância visual quanto dilemas éticos e jornadas de transformação pessoal.
Ambientado no México, o filme, que estreia esta semana nos Estados Unidos, na plataforma de streaming Netflix, traz uma premissa instigante e, ao mesmo tempo, carregada de potencial para reflexões sociais: uma advogada talentosa, mas profundamente frustrada, se torna cúmplice em uma reinvenção extraordinária — a de um narcotraficante que assume sua identidade como mulher trans.
Por trás de todo o brilho estético, porém, a trama se revela inconsistente, carecendo de um cerne emocional que dê substância aos temas complexos que propõe.
Logo nos primeiros minutos, somos apresentados a Rita Mora Castro, vivida por Zoe Saldaña, muito bem no papel. Ela é uma advogada brilhante, mas relegada às sombras de um sistema jurídico injusto e opressor. Sob o comando de um chefe vaidoso e superficial, Rita é responsável por elaborar discursos persuasivos e estratégias legais brilhantes, enquanto sua voz e identidade profissional permanecem invisíveis. Esse conflito ético é capturado com dramaticidade no início do filme, quando Rita protagoniza um número musical que a coloca no epicentro de uma rua movimentada, cercada por dançarinos que amplificam sua angústia.
Apesar da rica tapeçaria visual e temática, Emilia Pérez frequentemente se perde em sua própria grandiosidade. Os números musicais, por mais impressionantes que sejam, falham em transcender o mero ornamento e contribuir de maneira significativa para a narrativa.
Com um vigoroso refrão sobre “justiça à venda” e “os tribunais da consciência”, a cena é um exemplo da ambição estética do filme, mas também prenuncia uma de suas principais fragilidades: o uso de espetáculos chamativos para ocultar a falta de profundidade narrativa.
A monotonia da vida de Rita é abruptamente rompida com a entrada de Manitas Del Monte, interpretado pela espanhola Karla Sofía Gascón. Um poderoso e temido narcotraficante, Manitas faz a Rita uma proposta que desafia a lógica e a ética: ele deseja não apenas realizar sua transição de gênero por meio de uma cirurgia, mas também reconstruir sua identidade, reconfigurando sua vida pessoal e abandonando o passado criminoso. A oferta é cercada por um misto de promessas sedutoras de riqueza e uma intimidação velada, que não deixa espaço para recusas.
Esse ponto de virada transforma Rita em uma figura central em um plano audacioso, a levando a abandonar a previsibilidade de seu papel no sistema jurídico para assumir o papel de arquiteta de uma transformação profunda e perigosa.
O desenrolar da história adota um tom que mistura o realismo cru ao surrealismo estilizado. Rita embarca em uma jornada global, visitando clínicas e consultórios especializados para organizar a transição física de Manitas. Cada local visitado traz sua própria coreografia visual e temática.
Em Bangcoc, a cirurgia de redesignação de gênero é celebrada como um espetáculo carnavalesco, com luzes pulsantes, trajes exuberantes e dançarinos entoando versos que exaltam vaginoplastias e faloplastias como rituais de renascimento.
Em contraste, em Tel Aviv, um cirurgião entoa uma melodia melancólica, afirmando que “corpos podem ser moldados, mas almas permanecem intocadas”. Essas sequências, ainda que deslumbrantes em termos visuais, frequentemente sacrificam a exploração emocional e psicológica em favor de uma teatralidade superficial, deixando as complexidades humanas diluídas em gestos coreográficos e refrões simplistas.
Após a cirurgia, Manitas ressurge como Emilia Pérez, uma mulher cuja presença é marcada pela combinação de feminilidade recém-descoberta e autoridade intacta.
Karla Sofía Gascón entrega uma performance multifacetada, equilibrando a vulnerabilidade da transição com a determinação de alguém que não se rende facilmente ao passado. No entanto, o renascimento de Emilia não é suficiente para apagar as marcas de sua vida anterior.
Com a ajuda de Rita, Emilia organiza a fuga de sua família — sua esposa, Jessi (Selena Gomez), e os dois filhos — para a Suíça, onde assumem novas identidades e recebem fundos generosos para reconstruírem suas vidas longe do mundo violento de Manitas. Enquanto isso, o desaparecimento de Manitas é encenado de forma teatral como sua morte, permitindo que Emilia se estabeleça publicamente como uma nova figura em seu próprio direito.
A narrativa avança quatro anos, e Emilia emerge de um período de isolamento para procurar novamente Rita, dessa vez com um plano ainda mais arriscado: reunir-se com Jessi e os filhos na Cidade do México. O reencontro, longe de ser um ato de reconciliação, revela uma teia de ressentimentos e cicatrizes emocionais.
‘Emilia Pérez’: superficialidade
Um dos momentos mais poderosos do filme acontece quando Jessi, em um acesso de raiva e frustração, protagoniza uma dança visceral em um quarto escuro, um espaço que se transforma em palco para sua revolta emocional. Emilia, por outro lado, tenta equilibrar o desejo de se reconectar com sua família e a necessidade de manter sua nova identidade pública intacta, agora simbolizada por sua fundação, La Lucecita, dedicada às vítimas do narcotráfico.
Apesar da rica tapeçaria visual e temática, Emilia Pérez frequentemente se perde em sua própria grandiosidade. Os números musicais, por mais impressionantes que sejam, falham em transcender o mero ornamento e contribuir de maneira significativa para a narrativa.
As mudanças de tempo e as reviravoltas dramáticas são apresentadas com pressa, comprometendo a construção dos personagens e as nuances dos conflitos que enfrentam. Emilia, por exemplo, poderia ser uma figura profundamente introspectiva e simbólica, mas sua caracterização permanece superficial, priorizando sua função como ícone visual em detrimento de uma exploração emocional mais rica. Da mesma forma, Rita, que começa com grande promessa como uma personagem complexa, é relegada a uma função mecânica na trama.
O trio principal de atrizes – Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez – recebeu em Cannes o prêmio de melhor atuação feminina, um reconhecimento, talvez, exagerado.
O francês Jacques Audiard, embora um mestre do estilo, demonstra uma desconexão com o aspecto mais humano da história que narra. Em vez de usar o potencial do musical e do melodrama para penetrar nos dilemas éticos e emocionais dos personagens, ele os transforma em distrações que, embora atraentes, carecem de substância.
No final, Emilia Pérez é uma experiência que deslumbra os olhos, mas deixa o coração e a mente ansiando por algo mais. É uma obra que, apesar de sua ambição e brilho visual, permanece como um espetáculo vazio — uma promessa não cumprida de que estilo e substância podem coexistir em harmonia no cinema.
Apontado como favorito ao Oscar de melhor filme internacional, Emilia Pérez é, ao meu ver, bem inferior ao longa-metragem brasileiro Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. No entanto, por ter por trás a toda poderosa Netflix, deve emplacar múltiplas indicações ao prêmio.
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