Na impactante sequência de abertura de O Estranho Que Nós Amamos, sexto longa-metragem da diretora norte-americana Sofia Coppola (de Encontros e Desencontros), Amy (Oona Laurence) surge em um bosque exuberante com um cesto nas mãos. A menina, beirando a puberdade, parece saída de um conto de fadas. Colhe, absorta, cogumelos selvagens. Nesse belo cenário, quase edênico, ela é surpreendida pela vida real: sob uma árvore, jaz, gravemente ferido, um homem. O cabo McBurney (Colin Farrell, de A Lagosta) veste a farda dos ianques em pleno território confederado e é, aos olhos da garota, a encarnação do “inimigo”.
O perigo que McBurney pode representar, entretanto, não a afugenta. Amy recusa-se a permitir que o militar morra ao relento. “Não seria cristão.” Ela o ajuda a chegar até o casarão onde vive, um internato para moças de boa família localizado no coração do estado da Virginia, sul dos Estados Unidos. A escola é comandada por Martha (a excepcional Nicole Kidman, de As Horas), que conta apenas com a professora Edwina (Kirsten Dunst, de Melancolia), para cuidar do reduzido número de alunas que permaneceram na instituição durante a guerra. A chegada do soldado transforma a rotina do colégio.
O romance The Beguiled, de Thomas P. Cullinan, publicado 1966, já havia sido adaptado para o cinema em 1971, também com o título O Estranho Que Nós Amamos, pelo diretor Don Siegel (do clássico Vampiros de Almas), trazendo Clint Eastwood, com quem trabalhou em vários filmes, no papel de McBurney. Os dois longas-metragens, contudo, não poderiam ser mais diferentes. Sofia Coppola, que venceu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes deste ano por seu trabalho, primoroso, reconta a história da perspectiva das personagens femininas, a transformando em uma espécie de fábula cautelar, ou conto de fadas como toques de terror gótico.
Como em todos os filmes anteriores de Sofia, O Estranho Que Nós Amamos discute o desenraizamento, o estar fora de lugar, em trânsito. Isso vale, certamente, para o personagem de McBurney, mas também para Edwina e as alunas, que estão de passagem. A mansão fantasmagórica onde estão refugiadas é apenas lar para Martha – o imóvel pertence à família da diretora do internato, uma bela mulher de meia idade que não se casou e conduz a escola com mão de ferro. É a sua vida.
Como em todos os filmes anteriores de Sofia, O Estranho Que Nós Amamos discute o desenraizamento, o estar fora de lugar, em trânsito.
As relações entre as mulheres, isoladas do mundo pela guerra, se desestabilizam com a entrada em cena da figura do soldado. Não apenas por ser um representante do inimigo, mas, principalmente, por ser um homem. A presença de sua masculinidade entre as duas professoras e cinco alunas adolescentes faz aflorarem desejos, vaidades, ressentimentos. Como o internato está mergulhado em desolamento e tédio, o que há de mais instintivo e latente aflora com a presença do forasteiro.
Martha (Nicole Kidman) treme ao banhar e despir o soldado; a sensual Alicia (Elle Fanning, de Em Algum Lugar) invade seu quarto para beijá-lo enquanto dorme. Mas é sobre Edwina o impacto mais devastador: carente e vulnerável, ela se apaixona e vê em McBurney a possibilidade de escapar de seu destino, de sair daquele lugar esquecido por Deus.
Diálogos lacônicos, silêncios mortos e muita tensão erótica fazem de O Estranho Que Nós Amamos uma experiência cinematográfica singular. A absurda beleza da fotografia de Philippe Le Sourd (de O Grande Mestre), com todas as cenas noturnas rodadas à luz de velas, ajuda a construir um crescente clima de horror desencadeado pelo convívio com McBurney, personagem nunca completamente desvendado, pois o vemos através dos olhos das mulheres que o cercam: ele pode ser doce, sensual, cruel e mortífero. Depende de quem o vê na trama.
Sofia foi criticada, com certa razão, por banir do filme todos os personagens negros em uma região onde a escravidão era base de sustentação econômica. Explicou que, da forma como decidiu contar a história, o isolamento e a alienação das personagens tornam-se mais evidentes, pulsantes. Faz sentido: como já havia feito em Maria Antonieta (2008), a cineasta não está preocupada com rigor histórico. Prefere a subjetividade das pessoas que retrata. E isso ela faz com inegável talento.
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