Em cartaz nos cinemas brasileiros, Ferrari mergulha nos detalhes da vida de Enzo Ferrari, destacando a importância desses elementos na narrativa. Michael Mann (de O Informante e Fogo contra Fogo), ao dirigir o filme, não apenas entrelaça os detalhes da vida de Enzo na trama, mas os coloca como o próprio cerne da história. Desde a complexidade de seus relacionamentos pessoais até os detalhes intrincados do mundo das corridas de carros, cada aspecto é meticulosamente explorado, mostrando como esses detalhes são essenciais para a compreensão da vida e da morte. Através da atuação intensa de Adam Driver (de História de Um Casamento) como Enzo, somos levados a um mundo onde cada informação, por vezes aparentemente sem importância, tem um significado profundo, ecoando a complexidade da existência humana.
A história se inicia em uma manhã ensolarada e radiante, com um toque de surpresa desconcertante: um homem de cabelos brancos (interpretado por Adam Driver) sai da cama sem fazer barulho, evitando acordar uma mulher mais jovem dormindo (Shailene Woodley, de Escrito nas Estrelas), possivelmente sua esposa, já que, ao sair, ele passa por outro quarto e cobre com cuidado um menino dormindo (Giuseppe Festinese).
Enquanto isso, o telefone toca para ele em outra casa, onde outra mulher, Laura (Penélope Cruz, excepcional), atende e inventa desculpas por sua ausência. Quando ele chega, ela o recebe com uma pistola na mão. Ele é Enzo Ferrari, Laura é sua esposa, e ele acabou de violar uma regra fundamental: ela não vai questionar suas escapadas amorosas desde que ele esteja em casa a tempo do café da manhã, para manter as aparências na frente dos funcionários domésticos. Agora, ele passou a noite com sua amante de longa data, Lina Lardi, e seu filho, Piero, cuja existência Laura desconhece. Desde o início, Mann questiona o que é, afinal, uma família.
Ferrari é permeado pela sombra da morte, que vai além dos perigos do automobilismo. Enzo enfrentou perdas significativas, incluindo seu pai e irmão na Primeira Guerra Mundial, e a morte de seu filho Dino, aos 24 anos, em 1956, por distrofia muscular. Enzo e Laura visitam o túmulo de Dino diariamente, e Enzo fala com ele como se estivesse presente. Essa dor percorre todo o filme.
A carreira do empresário está profundamente ligada à mortalidade; ele era um piloto de corridas antes de fundar a Ferrari em 1947 com Laura. Apesar de sua experiência com perdas, Enzo continuou a competir e buscar a vitória, mesmo em 1957, quando ainda estava abalado pela morte de amigos próximos em uma corrida de 1933.
Ferrari é permeado pela sombra da morte, que vai além dos perigos do automobilismo.
Essa busca pela vitória é tanto uma paixão pessoal quanto uma necessidade prática desesperada. O cerne da história é o negócio: a Ferrari (a empresa) está ameaçada de falência porque Enzo está gastando muito na divisão de corridas. Para vender mais carros de varejo, a empresa precisa da publicidade de vencer uma corrida importante: a Mille Miglia, uma competição diurna de mil milhas de Brescia a Roma e de volta. Para negociar o investimento externo necessário de um fabricante de automóveis maior (como Fiat ou Ford), Enzo precisa do controle total da empresa, parte da qual está legalmente nas mãos de Laura. Mas seu compromisso com Enzo e a empresa é duramente testado por seu caso amoroso; em sua raiva, Laura pode estar disposta a destruir o negócio para destruir o homem.
Ao trabalhar com um roteiro de Troy Kennedy Martin, baseado na biografia de Enzo Ferrari escrita por Brock Yates, Mann vai além de simplesmente entrelaçar os detalhes dos planos e negociações na trama; eles se tornam a própria essência da ação. O ponto crucial do drama é, surpreendentemente, um cheque – se será assinado e descontado ou não. Essa trivialidade está em contraponto com a tragédia, sempre à espreita, nas corridas. A diferença entre a vida e a morte muitas vezes se resume a meros segundos; reduzir esses segundos em um recorde de pista torna-se uma busca que Enzo persegue com uma determinação vazia.
A atenção meticulosa de Mann aos detalhes ecoa a de Enzo, dando ao filme uma sensação de declaração pessoal mais do que apenas uma cinebiografia bem feita. Em um momento, o piloto Piero Taruffi (Patrick Dempsey) brinca ao pedir um cinzeiro em seu carro de corrida; mais tarde, Enzo destaca à sua equipe de box a importância de não respingar gasolina nos pilotos – especialmente no fumante Taruffi. Mann transmite com firmeza e sutileza o controle total de Enzo sobre cada aspecto de sua operação, conectando momentos aparentemente leves a considerações de perigo mortal. Enzo está ciente de que o perigo pode vir de qualquer lugar – não apenas de um acidente, mas também de um detalhe aparentemente insignificante – e Mann mantém a audiência ciente de que esses homens estão familiarizados com a possibilidade constante da morte.
Quando, na noite de uma corrida, os pilotos deixam bilhetes de despedida em seus quartos de hotel para suas parceiras, o gesto é ainda mais comovente pela sua incrível normalidade.
‘Ferrari’: uso da câmera
Ferrari exibe uma quase obsessão com o aspecto concreto e orgânico das corridas – à época, dirige-se em qualquer lugar. Seja em pistas de corrida ou simplesmente pela cidade, as cenas de carro apresentam closes recorrentes e nítidos de mãos nas marchas e pés nas embreagens, editadas com precisão. Mann se afasta das tomadas convencionais de carros de corrida (como as meramente sensacionalistas, mostradas ao nível dos pneus) para mostrar o que os pilotos veem. Filmando por cima de seus ombros ou até mesmo diretamente através do para-brisa, ele mostra a estrada à frente como um trecho insondável de incerteza ameaçadora e mostra pistas de corrida nas quais curvas implacáveis surgem de repente.
Quando um piloto morre durante um teste, Enzo recruta casualmente um substituto jovem e ambicioso, Alfonso de Portago (o brasileiro Gabriel Leone, muito bem no papel). No entanto, Enzo logo se desaponta e, em um discurso brutalmente franco na sala de jantar, repreende seus pilotos por sua complacência. Ele critica sua falta de determinação para vencer, contrastando com seus rivais que estão dispostos a vencer ou morrer tentando. Enzo vê isso como a essência da vida do piloto – uma “paixão mortal, uma terrível alegria”. Sua capacidade de manter a calma após a morte de um piloto é questionada por Laura, sua esposa, que percebe a dificuldade de Enzo em separar suas emoções de seu comportamento.
Essa dualidade é o ponto nevrálgico do personagem e do filme: a escolha de Enzo entre construir um muro emocional ou seguir outro caminho. A manutenção desse muro, e a exposição seletiva de seu lado emocional na vida pessoal e profissional, têm um preço alto, evidenciado pela interpretação tensa e contida de Driver, que transmite o conflito interno de Enzo.
Como Enzo, o desempenho de Driver é marcado por sua elegância e contenção, movendo-se com um equilíbrio refinado que Mann captura com uma câmera ágil e fluída, criando movimentos graciosos ao seu redor. Driver canaliza sua presença física imponente em uma precisão aerodinâmica tensa; há uma sensação palpável de energia ao redor de Enzo, atraindo olhares. Sua habilidade de manobra é impressionante: conhecido como Commendatore, ele personifica a grandiosidade, sendo não apenas a face corajosa da empresa para o público, mas também um analista perspicaz e um motivador eficaz para seus pilotos e engenheiros. Ele tem um olhar aguçado para os ajustes necessários e sempre diz a coisa certa no momento certo, seja para ajustar o equipamento com precisão ou para colocar os pilotos em um estado mental competitivo ideal, adaptando-se às necessidades individuais de cada um. Ele é a encarnação da masculinidade hegemônica.
Enzo é meticuloso ao cuidar de sua imagem pública e habilidoso em escapar de situações delicadas, como sua escapada matinal da amante Lina, conduzindo seu carro silenciosamente até fora do alcance auditivo antes de acelerar. Apesar de ser reconhecido e aplaudido na rua como uma figura pública importante, sua reputação é afetada pelas tragédias que cercam o automobilismo, incluindo a morte de pilotos e espectadores. Seus esforços para manter e melhorar sua imagem envolvem manobras clandestinas, adicionando uma camada de drama à história.
Ferrari se equilibra entre o melodrama e o filme de ação, entre o privado e o público, que se atravessam o tempo todo ao longo da narrativa.
Laura também se preocupa com sua imagem pública e com a empresa, mostrando uma habilidade meticulosa nos negócios. Ela se destaca por sua análise perspicaz dos detalhes legais e financeiros, até mais do que Enzo. Durante a gestão de questões bancárias, Laura descobre as decepções românticas de Enzo, o que desencadeia uma crise conjugal. Penélope Cruz retrata Laura como uma mulher determinada e focada, capaz de expressar suas emoções com intensidade, o que a torna uma adversária poderosa tanto nos negócios quanto no casamento..
No contexto do filme, a fusão entre a vida pessoal e profissional não apenas afeta o negócio, mas também as relações interpessoais, como a de Enzo com seu filho, Piero, nascido de seu relacionamento com Lina. O desfecho dessa narrativa é deixado em aberto, porém, Piero desempenha um papel central, oferecendo a Enzo e à narrativa um momento marcante de conexão paterna, ressaltando uma lição sobre a estética da eficiência, tanto na vida quanto no cinema.
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