Uma das muitas qualidades de Ferrugem, terceiro longa-metragem do cineasta Aly Muritiba, é retratar com imensa sensibilidade o universo adolescente sem cair na tentação de fazer de seu filme um produto exclusivamente para esse público. O ótimo roteiro, coassinado pelo diretor baiano radicado em Curitiba e pela paranaense Jessica Candal, aborda de forma muito crítica, por vezes implacável até, o uso banalizado da tecnologia no cotidiano de um grupo de jovens.
Quando o vídeo íntimo de uma garota, Tati (a revelação Tiffanny Dopke), e seu ex-namorado vaza na internet, ela despenca em um poço sem fundo. Transforma-se em alvo de julgamentos cruéis e descobre-se absolutamente só, indefesa, principalmente pelo fato de ser mulher e inexperiente. Teme que as imagens cheguem aos pais e descobre-se vulnerável como jamais se sentiu.
Tanto o roteiro quanto a direção de Aly Muritiba optam por um tom intimista e lacunar, evitando tudo explicar de forma didática. O que não vemos, e deixamos de saber com exatidão, é tão importante quanto aquilo que está na tela. Essa sensação de enigma que permeia a narrativa intriga e se materializa, também, por meio de aspectos técnicos do filme, como no inventivo trabalho de desenho de som (de Alexandre Rogoski), premiado em agosto no Festival de Gramado, do qual Ferrugem saiu com outros dois Kikitos: melhor longa-metragem e roteiro. Os sons ao redor dos personagens reverberam em seus estados emocionais, tornando-se por vezes gatilhos, ou pistas do se se passa dentro deles.
Tanto o roteiro quanto a direção de Muritiba optam por um tom intimista e lacunar, evitando tudo explicar de forma didática.
A igualmente expressiva fotografia do português Rui Poças (de Zama, de Lucrecia Martel) afasta o filme de excessos melodramáticos ou de um registro mais realista – as cores são mais intensas no início da trama, mas, principalmente na segunda metade, vão tornando-se frias, desbotadas, como a angústia que aflige o outro protagonista do filme, Renet (Giovanni de Lorenzi), cujo envolvimento com Tati vai se desenovelando sem pressa. Outra marca do cinema de Muritiba.
Sem contar muito aqui sobre o que acontece na história, a primeira parte de Ferrugem tem como cenário principal a escola, um espaço de solidão e hostilidade, onde Tati se vê traída e julgada até mesmo por quem ela acredita ser mais próximo. Na segunda metade, a ação se desloca para uma praia invernal, chuvosa, onde Renet se vê às voltas tanto com seu dilema quanto com a conturbada relação entre seus pais, agora separados, Davi (Enrique Diaz) e Raquel (Clarissa Kiste),
Como já havia feito em seu longa anterior, o também premiado Para Minha Amada Morta (2015), Muritiba evita soluções óbvias, desconstruindo fórmulas e convenções de gêneros. O que, na superfície, parece ser um drama teen, com toques de mistérios, revela-se bem mais complexo. Há suspense, mas não por uma manipulação proposital do espectador, mas porque, organicamente, faz sentido que os personagens passem por situações de intensa tensão: há muita dor e não ditos na trama. E como os personagens são muito bem delineados e defendidos por um elenco em perfeita afinação, Ferrugem tem a força de um soco no estômago. Que segue a doer dias depois de o assistirmos.
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