Para início de conversa, é preciso deixar bem claro: o personagem Roberto Tedesco, protagonista de O Filho Eterno, que chega hoje aos cinemas brasileiros, não é o escritor Cristovão Tezza, autor do livro homônimo no qual o longa-metragem é baseado. Nem mesmo o romance, lançado em 2007 e vencedor de inúmeros prêmios, entre eles o Jabuti, é uma obra de não ficção.
O cineasta paulista Paulo Machline (de Trinta), indicado ao Oscar de melhor curta-metragem por Uma História de Futebol (1998), preferiu optar por uma adaptação livre da obra de Tezza, que se apropria de elementos fundamentais da trama, mas não se prende ao texto literário, talvez porque, com razão, tenha percebido (sabiamente) que não conseguiria transpor para a tela a dicção presente na escrita do escritor catarinense há anos radicado em Curitiba.
Afinal, embora seja um romance ficcional, a obra tem matizes autobiográficas e narra, com desconcertante sinceridade, o embate interno de um pai despreparado para enfrentar os desafios de ter um filho com Síndrome de Down. Tezza vivenciou isso na chamada “vida real”, mas optou por transfigurá-la no livro, contando a história em terceira pessoa, e não em primeira. Mas esse “ele” também não é exatamente Roberto, o personagem central de O Filho Eterno, vivido pelo ator Marcos Veras, mais conhecido por seu trabalho cômico.
Roberto Tedesco, como Tezza, é professor universitário, escritor e já trabalhou como relojoeiro. O roteiro de Leonardo Levis, que contou com a colaboração do paranaense Murilo Hauser, encarregado de dar um “sotaque curitibano” aos diálogos e à história, rodada em Curitiba neste ano, leva à tela um personagem menos complexo, não necessariamente superficial, porém certamente menos reflexivo e bastante mais palatável do que o protagonista do livro. Talvez porque Machline buscasse uma aproximação maior com o público, sem trair a essência do personagem: o dilema de aceitar um filho que não é o que esperava continua presente. Como no romance, o personagem rejeita o menino, chega ao extremo de desejar a morte de Fabrício, e de tentar, ingenuamente, encontrar ajuda médica para “consertá-lo”.
Veras surpreende no papel de Roberto, talvez porque sua persona cômica seja muito forte no imaginário do público. Ele se revela um ator sensível, e tem bons momentos no filme.
O mesmo futebol que deu ao cineasta sua indicação ao Oscar está presente na estrutura narrativa do filme. No livro, o esporte é representado pelo Clube Atlético Paranaense, time do escritor. O Furacão, no filme, é substituído pela Seleção Brasileira e suas participações em Copas do Mundo, a partir do certame de 1986, culminando com a dos Estados Unidos, em 1994, da qual o time saiu campeão.
As copas são marcadores do tempo dramático na trama – afinal, tanto Roberto quanto seu pai, vivido pelo veterano ator paranaense Zeca Cenovicz, são relojoeiros. Esse momento é chave na aproximação entre Fabrício (o adorável Pedro Vinícius), a essa altura com 8 anos, e seu pai, que desde o nascimento mantém com ele uma relação de relutante afetividade.
Em comparação ao impacto emocional que a leitura do romance de Tezza pode causar, o filme de Machline é, sem dúvidas, uma experiência mais light e digerível para o grande público. Isso não chega a ser um defeito, uma vez que o longa se assume como uma adaptação livre. Apesar de o potencial dramático da história não se perder, ele se atenua. É um cinema de boas intenções.
Veras surpreende no papel de Roberto, talvez porque sua persona cômica seja muito forte no imaginário do público. Ele se revela um ator sensível, e tem bons momentos no filme. No papel da mulher do escritor, a jornalista Claudia, Débora Falabella brilha – o monólogo em que a personagem fala sobre o aniversário do filho é memorável e muito emocionante.
Outro ponto alto é a excelente direção de arte do filme, a cargo da curitibana Isabelle Bittencourt, que consegue, com bastante sutileza e inventividade, reconstituir o clima da Curitiba das décadas de 80 e 90, dos ambientes privados, como a casa de Roberto e Claudia, aos espaços públicos onde a trama se desenrola.
O Filho Eterno, visto como uma obra independente, é um bom filme. Quem leu o romance de Tezza pode se frustrar um tanto, porque lhe falta a subjetividade que sobra nas páginas do livro brilhante.
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