Rever um filme, sobretudo quando bastante tempo se passa desde que o assistimos pela primeira (ou última vez), é uma experiência sensível, e estética, das mais potentes. A obra ganha camadas de sentido, assim como nosso olhar também se altera com os anos, seja pelas referências acumuladas ou pelas transformações existenciais que vivenciamos. Nestes meses de quarentena, um reencontro dos mais marcantes para mim foi com Filhos da Esperança, longa-metragem do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, duas vezes premiado com o Oscar de melhor direção, por Roma (2018) e Gravidade (2013), sobre o qual escrevi há duas semanas.
Unanimidade de crítica à época de seu lançamento, em 2006, Filhos da Esperança não alcançou o sucesso comercial que merecia: com um orçamento de US$ 76 milhões, acumulou nas bilheterias do mundo um pouco mais de US$ 70 milhões. Tecnicamente, foi, portanto, um fracasso comercial, compensado por três indicações ao Oscar – melhor roteiro adaptado, fotografia e edição – e, principalmente, por seu legado ao gênero da ficção científica, e do subgênero das distopias futuristas. Hoje, é citado entre clássicos como Metrópolis (1927), Laranja Mecânica (1971), Blade Runner – O Caçador de Androides (1982) e Matrix (1999).
Unanimidade de crítica à época de seu lançamento, em 2006, Filhos da Esperança não alcançou o sucesso comercial que merecia: com um orçamento de US$ 76 milhões, acumulou nas bilheterias do mundo um pouco mais de US$ 70 milhões.
Cuarón parte de um romance da escritora inglesa de livros policiais P. D. James, em diálogo com O Conto da Aia, da canadense Margaret Atwood, adaptado primeiro para o cinema e, mais recentemente, para a televisão em uma das séries de maior sucesso dos últimos anos. Em ambos os livros, as mulheres perderam a capacidade de gerar filhos em decorrência de questões ambientais, interligadas ao capitalismo mas também a um esgotamento da espécie humana, que envolve aspectos fisiológicos e socioculturais.
A trama é intrigante. Em 2027, já não nascem mais crianças no mundo. Quando morre o terráqueo mais jovem, um argentino visto como mascote, ente querido de toda a humanidade, o planeta entra em profunda depressão. Sua perda desencadeia uma onda de protestos em escala mundial. O fim pode estar próximo.
Na Inglaterra, entretanto, surge a esperança de um recomeço: Kee (Clare-Hope Ashitey) – imigrante ilegal, negra e pobre – está grávida e é, de certa maneira, “disputada” por grupos extremistas, de esquerda e direita, sedentos por se apossarem dela, e de seu futuro bebê, para transformá-los em símbolos ideológicos, objetos de adoração. Clive Owen (de Closer – Mais Perto) vive Theo (Deus em latim), um ex-ativista procurado pela ex-mulher, Julian (Julianne Moore, de Para Sempre Alice), também militante, que pede a ele amparo e proteção para Kee.
Antecipando em quase uma década a crise dos refugiados na Europa, iniciada em 2015, Filhos da Esperança, além de ter um argumento impactante e um roteiro inteligente, muito bem alinhavado, é magistralmente dirigido por Cuarón. O cineasta, em afinada parceria com o diretor de fotografia Emanuel Lubezki, mexicano como ele, faz uso de grandes planos-sequência, profundidade de campo e cenas de ação de tirar o fôlego, mas também de momentos de introspecção bastante tensos, em que a câmera cola no rostos dos personagens de maneira quase claustrofóbica. Tudo para trazer o espectador para dentro do filme. Rever Filhos da Esperança me fez perceber sua atualidade e pertinência. É uma obra antecipatória que se impõe por sua depurada excelência técnica e estética, jamais imposta à narrativa, e sim a potencializando de forma orgânica, como cabe ao grande cinema.
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