O título de Fim de Festa, longa-metragem do cineasta pernambucano Hilton Lacerda (do excelente Tatuagem), permite mais de uma leitura. A mais óbvia diz respeito ao tempo-espaço em que a trama tem seu ponto de partida: quarta-feira de Cinzas no Recife, uma das capitais brasileiras do carnaval. Outra leitura, mais sutil e latente em toda a ação do filme, se refere ao momento que o país atravessa hoje, tempos sombrios de confronto, intolerância e cisão, fazendo da produção uma obra pertinente e, desde já, um dos títulos importantes do cinema nacional em 2020.
Essa bifurcação de possibilidades de entendimento de Fim de Festa, no entanto, vai além de seu título. Na superfície, e para um público menos interessado em sub-textos políticos e sociológicos, o filme se encaixa, sem maiores esforços, no gênero policial, tanto que seu protagonista, Breno (o ótimo Irandhir Santos, o Álvaro da novela Amor de Mãe), é um delegado investigador.
Durante o carnaval, uma jovem turista francesa, casada com um imigrante brasileiro, é assassinada durante a folia. Ela é sufocada com um saco plástico e a única possível testemunha é um mendigo dependente de crack, cujo relato mais se aproxima de um delírio envolvendo um urso polar. Para assumir o caso, Breno, que passava o carnaval no interior do estado, volta ao Recife às pressas. O crime torna-se prioridade para o governo do Estado, porque envolve uma turista estrangeira.
Embora a investigação do caso seja, em tese, a coluna vertebral do roteiro de Lacerda, que se desenvolve – bastante bem – em torno do assassinato. Na melhor tradição whodunit (quem matou?), a solução desse mistério revela-se, ao longo da narrativa, um quase pretexto para discutir outros temas.
Breno, que representaria a lei e a ordem, está longe de ser uma figura heroica. Ele está mais próximo da tradição do cinema noir, cujos protagonistas, em geral detetives, inspetores de polícia e outros agentes da lei, são moralmente ambíguos e emocionalmente fraturados. O personagem central de Fim de Festa vive com o filho, Breninho (Gustavo Patriota) em um apartamento de classe média alta da capital pernambucana. Sabe-se que o delegado é separado da mulher e, no passado, teria cometido um grande erro, envolvendo um acidente.
Lacerda, como já fez antes em Tatuagem, investe no erotismo, investe na sexualidade, como metáfora libertária, contraponto à crescente caretice que toma conta do Brasil.
Ao chegar a Recife para investigar a morte da turista francesa, Breno se surpreende. Dá de cara com Penha (Amanda Beça), filha de um casal de amigos da família, nua em pelo em sua cozinha. A jovem, que mora com a família em Buenos Aires, está na cidade para o carnaval, mas também com o objetivo de captar imagens para um documentário que será seu trabalho de conclusão de curso. Ela veio a convite de Breninho, aspirante a escritor que também chamou para o apartamento Indira (Safira Moreira) e Angelo (Leandro Villa), dois jovens negros.
Os quatro, surpreendidos pelo policial em sua casa, estão ainda no ritmo do carnaval e vivendo um quadrado idílico-amoroso que contrasta com o fastio e a amargura de Breno, um homem cansado de guerra, exaurido pelo sistema e uma espécie de personificação do Brasil de hoje, descrente e um tanto cínico. A anarquia erótica representada pelos jovens também se choca com o recrudescimento conservador ao seu redor. Em uma sequência bastante emblemática, eles são interpelados pela polícia na praia porque as duas jovens estão com os seios à mostra e afrontando “as pessoas de bem”. Angelo, o homem negro do grupo, é o único revistado.
Lacerda, como já fez antes em Tatuagem, investe no erotismo, na sexualidade, como metáfora libertária, contrapondo a crescente caretice que toma conta do Brasil. Mas nem o clima de amor livre entre os quatro é poupado de um olhar mais crítico – há entre eles uma tensão racial velada que se manifesta em alguns momentos do filme, como quando os dois negros percebem o tipo de relação que Penha e Breninho têm com a empregada de anos da família, um vínculo típico da dinâmica “casa grande e senzala”, herdada dos tempos coloniais.
Por último, mas não menos importante, é o contundente comentário que Fim de Festa, grande vencedor do último Festival do Rio, tece sobre o papel da imprensa no Brasil contemporâneo. Há no filme um veículo independente chamado Dracma, misto de podcast e canal de YouTube, que funciona como contraponto da chamada grande mídia, denunciando os abusos da polícia e do Estado, semeando ventos e colhendo tempestades. O jornal funciona como uma espécie de vigilante irreverente da sociedade que não poupa nada nem ninguém. É uma interessante nota cômica dissonante no longa.
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