Personagem nascido na Espanha há cerca de quatrocentos anos e tido como símbolo da sedução e da libertinagem, Don Juan atravessa os séculos como fonte inspiradora de obras literárias, pinturas, músicas, filmes. Em Flores Partidas (2005), de Jim Jarmusch, o mito está mais uma vez presente. Mas, agora, na forma de alguém em profunda crise, corroído pelo tédio e que, de repente, acha-se na obrigação de mergulhar no passado para recuperar algo importante. Ou para encontrar a si mesmo.
Don Johnston (a referência ao folclórico personagem espanhol já começa no nome do protagonista) é interpretado por Bill Murray. Apático ao extremo, ele acaba abandonado por sua mais nova conquista. A angústia do rompimento sai de cena quando Johnston recebe a notícia de que é pai de um rapaz de 19 anos. O comunicado chega através de uma carta anônima enviada por uma de suas antigas namoradas. Seu vizinho e melhor amigo, o etíope Winston (Jeffrey Wright), logo se anima para incentivar Johnston a desvendar o mistério. Winston tem obsessão por histórias policiais.
‘Flores Partidas’ revela-se um belo e simpático filme no qual nada é por acaso e cada cena tem sua razão de estar onde está. Apesar de isso parecer básico no cinema, convenhamos, nem sempre acontece.
Passamos então a participar do plano do protagonista de sair em busca do passado que renasce. Ele faz o possível para demonstrar desinteresse em aprofundar-se na questão. Pelo menos de início. Afinal, tédio e apatia são a marca de Johnston. Murray, considerado um mestre do minimalismo, está perfeito para atender àquilo que o personagem exige. O arrogante desprezo com o qual Johnston responde às motivações de Winston para buscar mais detalhes sobre a carta revela-se falso e é elegantemente desfeito pelo roteiro. É agradável acompanhar suas negações aos pedidos de Winston e, logo depois, vê-lo fazer aquilo que negou.
Na trajetória pelos Estados Unidos à procura das antigas namoradas, Johnston encontra exemplos de famílias atípicas. Vemos, então, que não é só esse “Don Juan” personificado em Bill Murray que está em crise, mas a própria família estadunidense de classe média. Atenção especial para o segundo encontro na viagem do protagonista. O constrangimento chega a vazar da tela. O que pode parecer exagero aqui poderá ser facilmente comprovado pelo espectador.
Acompanhamos o personagem de Bill Murray com satisfação neste road movie (ou falso road movie, como defendem alguns, já que não há transformação significativa do protagonista no percurso). A câmera subjetiva nas cenas de viagem de carro, aquela em que vemos o que o personagem vê, nos ajuda nesse sentido. Outro forte aliado nesse passeio é o CD gravado por Winston especialmente para a viagem peculiar do amigo.
Flores Partidas revela-se um belo e simpático filme no qual nada é por acaso e cada cena tem sua razão de estar onde está. Apesar de isso parecer básico no cinema, convenhamos, nem sempre acontece. Em Flores Partidas o supérfluo inexiste: o encadeamento das imagens é cuidadosamente construído para nos conduzir com o protagonista.
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