Em meio a uma cena de filme, surge um gato. Ou um cachorro. Ou qualquer outro animal. E, sem perceber, prendemos a respiração. O enredo pode estar repleto de perigos, tragédias e reviravoltas cruéis, mas nada importa tanto quanto o destino daquela criatura. Então, um pensamento inevitável se instala na nossa mente: “Se algo acontecer com esse bichinho…”.
É uma ameaça que dificilmente será cumprida, mas, no calor do momento, parece uma promessa solene. Os animais têm o dom de atravessar nossas defesas emocionais de maneira avassaladora. Podem ser temperamentais, travessos, até briguentos – como os meus próprios (e amados) cães, Criolo e Rufus. Mas jamais enganam uns aos outros por ganância. Não manipulam sistemas para garantir privilégios. Não legislam contra os direitos alheios. No cinema, um personagem humano pode perder totalmente nossa compaixão, a ponto de seu sofrimento parecer um castigo merecido. Mas um gato? Um gato nunca deveria sofrer.
Por isso, Flow, indicado aos Oscar de melhor filme internacional e animação em longa-metragem, se torna uma experiência tão angustiante, especialmente para quem tem um coração sensível a criaturas de quatro patas. Desde os primeiros instantes, o filme, representante da Letônia no Oscar 2025, coloca animais em perigo constante e não oferece alívio. Mesmo nos raros momentos de calmaria, há uma tensão subjacente, um lembrete constante de que a ameaça nunca desaparece por completo. Suspense, contemplação e uma melancolia esmagadora se misturam para criar algo raro: um filme que não apenas emociona, mas nos faz sentir completamente impotentes diante da vastidão do mundo.
Dirigido por Gints Zilbalodis (Longe, 2019), Flow acompanha a jornada de um gato solitário, que vive em uma casa abandonada no meio da floresta. Nas sombras, um grupo de cães domesticados ronda o território, caçando-o sem descanso. Mas a perseguição é interrompida de maneira abrupta quando uma onda gigantesca irrompe pela paisagem, arrastando tudo em seu caminho. E essa é apenas a primeira tragédia. A água não para de subir, lentamente consumindo cada pedaço de terra firme até que nada reste além de uma imensidão líquida e indiferente.
A única salvação é um pequeno barco à vela. O gato se lança a bordo, seguido por um lêmur e uma capivara. A embarcação se torna seu novo mundo — um refúgio precário que desliza sobre as copas das árvores, passa por montanhas submersas e atravessa os restos silenciosos da civilização humana. Os cães retornam, mas, no meio do caos, um golden retriever se junta ao grupo, trazendo consigo sua natureza amigável. Um serpentário, talvez por instinto, talvez por compaixão, oferece peixes para alimentar os náufragos.
Visualmente, Flow remete ao universo dos videogames. O estilo de animação, as cores vibrantes, as estruturas imponentes ao fundo — tudo evoca a estética de um mundo aberto, cheio de perigos e desafios.
Diante da catástrofe, esses animais, que em circunstâncias normais seriam predadores e presas, aprendem a conviver. Percebem que a única maneira de sobreviver é colaborando – uma ironia dolorosa, considerando que a humanidade jamais chegou a essa conclusão.
Não há sutileza nessa mensagem. Tampouco há sutileza em um filme que constrói sua trama colocando animais em perigo. Zilbalodis não pede nossa empatia, ele a exige, como um golpe certeiro no peito. Para ser honesto, Flow pode até ser considerado um truque emocional, mas um truque que funciona. Bichos são adoráveis. Animais lutando por suas vidas são um soco no estômago.
Mas quem disse que o cinema precisa ser sutil? Certamente não alguém digno de ser levado a sério. Ainda assim, Flow encontra espaço para delicadeza nos detalhes. Entre resgates arriscados e alianças inesperadas, há momentos de beleza: um gato, por mais aterrorizado que esteja, incapaz de resistir à tentação de brincar com a cauda oscilante de um lêmur. Vida, apesar de tudo.
‘Flow’: sem humanos
E os humanos? Quando Flow começa, já desapareceram. O filme atravessa os restos de um mundo que um dia foi nosso – prédios que tocam o céu, monumentos afogados em silêncio, ruínas de uma civilização que se destruiu sem deixar herdeiros. É um retrato melancólico, mas com uma ironia embutida: sem nós, talvez a natureza tivesse uma chance.
Visualmente, Flow remete ao universo dos videogames. O estilo de animação, as cores vibrantes, as estruturas imponentes ao fundo — tudo evoca a estética de um mundo aberto, cheio de perigos e desafios. Em certos momentos, a sensação é de estar diante de um jogo que nunca seremos capazes de jogar. E isso faz sentido, porque nesta história, a humanidade já não existe.
O filme dialoga com O Robô Selvagem, outra animação na disputa do Oscar de animação, que também narra um futuro no qual os animais precisam se unir para sobreviver. Mas, enquanto O Robô Selvagem carrega um simbolismo messiânico, Flow é essencialmente a Arca de Noé — ou melhor, um bote à deriva no fim do mundo.
Não se pode dizer que tudo termina bem. Porque não poderia terminar bem. Os personagens de Flow não controlam seu destino, e se sobreviverem, será um milagre. Mas o filme em si já é um milagre. Talvez, dentro dessa devastação, reste ao menos uma fagulha de esperança – não para nós, mas para os inocentes que herdarão o planeta que deixamos para trás.
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