Foram mais de 10 anos concebendo o filme que, ontem, iniciou a Mirada Paranaense do 4º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Ricardo E. Machado, diretor do longa, emprestou de uma teoria por ele criada, a da fabricação do pão, para nos oferecer um dos melhores documentários nacionais dos últimos anos. Farinha, fermento, açúcar, sal, gordura, ovos e água. Os mesmos ingredientes da fabricação do pão e das cidades, como disse o próprio diretor no posterior debate, escondem a metáfora de nossa relação com a cidade e seus personagens.
A farinha são as pessoas; o fermento, a indústria; o açúcar, o dinheiro; o sal, o governo; a gordura, a limpeza pública; os ovos, o turismo; e a água, o transporte. Nesta construção metafórica, o sal age controlando o acesso do açúcar ao fermento. A gordura é o que deixa o pão cheiroso, enquanto os ovos o deixam mais bonito. A água? Esta une todos os elementos. E é com esta ideia nas entrelinhas que Gastronomia Urbana apresenta constastes do cotidiano curitibano, criando uma narrativa que deixa a pergunta: quem é o verdadeiro personagem de seu documentário?
Com direção de arte e fotografia primorosas, Gastronomia Urbana flerta com a psicodelia. O competente trabalho do diretor e sua equipe de edição adapta a “realidade” das participações. Desta forma, ele se apropria do discurso dos personagens documentados para dar voz à sua própria perspectiva sobre a cidade. Mas não se engane, somos parte desta crítica.
Ele se apropria do discurso dos personagens documentados para dar voz à sua própria perspectiva sobre a cidade. Mas não se engane, somos parte desta crítica.
E é daí que saí a resposta a pergunta feita acima. Diferente do que possa parecer, somos nós, espectadores, o personagem central do filme de Ricardo E. Machado. O choque que a construção cirúrgica de sua obra – segundo o próprio, inacabada – causa reside no riso desprendido pelo público. Ao escancarar as mazelas escondidas pelas ruas de Curitiba, as diferenças culturais e sociais, ela (risada) também evidencia a cegueira e as limitações de nosso conhecimento sobre o próximo.
Não que apenas o riso seja um atestado de culpa (a participação do ex-prefeito de Curitiba, Rafael Greca, é digna de memes), mas ele é demonstração clara, e até certo ponto cruel, do que jogamos para debaixo do tapete. Como sair da catarse criada a partir da percepção de nossa cegueira, e mais, como mudar e reconstruir a cidade, partindo de um ponto de vista mais humano e acolhedor? Assim como a obra do diretor se mostra em constante criação (e adaptação), o mesmo pode se dizer sobre a resposta à pergunta anterior.
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