Com o passar dos anos, o cineasta britânico Ridley Scott tem se libertado de qualquer amarra que a indústria ou o público possa tentar impor. Ele já não parece interessado em padrões ou convenções; sua preocupação está exclusivamente em contar histórias que ressoem com força e em provocar emoções profundas em quem as assiste. Cada novo trabalho é uma declaração ousada, uma reafirmação de sua liberdade criativa.
Quando Gladiador estreou em 2000, o filme se destacou por reinventar o gênero épico, adotando uma abordagem sombria, realista e séria que “jogava areia nos olhos da história”, questionando as narrativas heroicas tradicionais enquanto reavivava o interesse pelo gênero.
Agora, com Gladiador II, Scott retorna ao universo romano com a mesma grandiosidade visual e narrativa, mas desta vez injetando uma camada de ironia e absurdo que reflete sua fase mais experimental e destemida. O filme não apenas se propõe a ser um espetáculo de ação e drama histórico, mas também abraça um tom deliberadamente excêntrico, que desafia as expectativas dos blockbusters contemporâneos. É um longa que se recusa a se levar completamente a sério, flertando com o humor absurdo, ou camp, sem perder a substância emocional e visual que caracteriza a obra de Scott.
Ao mesmo tempo, Gladiador II presta uma homenagem vibrante à tradição do cinema épico, evocando o glamour e a teatralidade de clássicos. Mas Scott vai além: ele “reimagina” essa extravagância com sua assinatura contemporânea, incluindo, por exemplo, a inusitada adição de tubarões no Coliseu – um toque tão ousado quanto provocador, beirando o absurdo.
A história se concentra em Lúcio Vero, interpretado com intensidade por Paul Mescal (de Aftersun). Filho de Lucila (Connie Nielsen) e do lendário Maximus Decimus Meridius (Russell Crowe), Lúcio é o legítimo herdeiro do trono romano. Exilado na infância para protegê-lo das maquinações assassinas da corte, ele cresceu longe do poder que lhe pertence por direito. Enquanto isso, o Império foi tomado pelos irmãos Geta (Joseph Quinn) e Caracala (Fred Hechinger), dois imperadores tão perversos e instáveis quanto o inesquecível Cômodo de Joaquin Phoenix.
Do outro lado da balança está Macrino, vivido por um Denzel Washington em plena forma. Macrino, um ex-escravo que conquistou uma imensa fortuna e se tornou um magnata das lutas de gladiadores, descobre Lúcio, agora capturado e reduzido à condição de escravo. Essa premissa, que ecoa diretamente a narrativa do primeiro filme, pode parecer um recurso preguiçoso em um roteiro que, por vezes, repete elementos familiares, incluindo a perda trágica de entes queridos como catalisador para a vingança. Mesmo assim, Washington transforma seu personagem em algo fascinante. Ele vê em Lúcio uma peça útil em seus próprios jogos de poder, mas o vínculo entre os dois é permeado por camadas de tensão e manipulação.
A performance de Denzel Washington é uma aula de presença de cena. Ele trata cada linha de diálogo como se fosse parte de uma tragédia shakespeariana, extraindo uma musicalidade incomum do texto de David Scarpa. Mesmo quando o roteiro não alcança grandes alturas, Washington eleva o material com sua dicção ritmada e uma fisicalidade expressiva. Seus gestos são calculados, seus olhares carregados de significado, e até os movimentos de suas vestes luxuosas – cuidadosamente desenhadas por Janty Yates e David Crossman – tornam-se parte do espetáculo.
A performance de Denzel Washington é uma aula de presença de cena. Ele trata cada linha de diálogo como se fosse parte de uma tragédia shakespeariana, extraindo uma musicalidade incomum do texto de David Scarpa.
Por outro lado, Paul Mescal constrói Lúcio como uma figura atormentada, um homem cuja raiva parece nunca dar descanso. Sua energia é crua, visceral, quase primitiva, e ainda assim há algo de delicado em sua alma – ele encontra consolo na poesia de A Eneida, de Virgílio, sugerindo que, apesar de sua violência, Lúcio carrega em si uma faísca de idealismo e beleza. Não é uma atuação que busca carisma instantâneo como a de Russell Crowe no papel de Maximus, mas sim uma performance que cresce aos poucos, sustentada por uma profundidade emocional e pela força simbólica do personagem.
A trilha sonora de Harry Gregson-Williams dialoga com o legado de Hans Zimmer, mas não se limita a homenagens. Há momentos em que ela se destaca por si só, com temas que evocam heroísmo e tragédia em igual medida, ampliando o impacto das cenas de ação e dos conflitos internos dos personagens.
Visualmente, Scott continua desafiando convenções. Ele rejeita qualquer compromisso com a precisão histórica, preferindo usar o passado como uma tela para explorar temas universais. A Roma de Gladiador II não é uma representação literal do Império Romano, mas um caleidoscópio de imagens que dialogam com narrativas mais amplas de poder, opressão e supremacia. Scott desconstrói os mitos do mundo clássico, mostrando como eles foram apropriados ao longo dos séculos por ideologias políticas e religiosas. Macrino, por exemplo, é um outsider que, ao entrar no sistema, reproduz as mesmas crueldades que antes enfrentou – uma reflexão amarga sobre o ciclo do poder.
Mas o filme não se limita ao peso de suas metáforas. Há momentos de pura ousadia cinematográfica, como uma batalha naval encenada dentro do Coliseu – inspirada por relatos históricos, embora Scott adicione sua própria dose de extravagância com ângulos de câmera dinâmicos e tubarões como espectadores improváveis. Em outra cena, vemos Lúcio enfrentando babuínos gerados por CGI em um confronto que mistura brutalidade e surrealismo.
Enquanto isso, os irmãos Geta e Caracala, interpretados por Quinn e Hechinger, entregam atuações deliciosamente exageradas, transformando seus personagens em caricaturas de imperadores descontrolados. A presença de um pequeno macaco de estimação como companheiro inseparável só reforça o tom teatral e irônico que permeia o filme.
Com Gladiador II, Ridley Scott prova, mais uma vez, que sua visão cinematográfica não conhece limites. É um épico que mistura drama, humor, ação e metáforas poderosas, criando uma experiência que é tanto um banquete visual quanto uma reflexão provocativa. É, acima de tudo, uma celebração do cinema em toda a sua glória expansiva e desafiadora.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.