Não deixa de ser uma espécie de simplificação grosseira acusar Woody Allen de ser um artista repetitivo. Não há dúvidas de que, até por realizar um longa-metragem por ano desde a década de 1970, ele acabe revisitando temas, referências cinematográficas, literárias e até musicais, na construção de uma obra até certo ponto irregular, mas com muito mais altos do que baixos.
Em Homem Irracional, em cartaz desde ontem nos cinemas brasileiros, Allen volta a um assunto recorrente em sua obra: a possibilidade concreta de qualquer ser humano cometer um crime, de matar, e pelas mais diversas motivações, mais ou menos frívolas, mas quase sempre de caráter existencial, ainda que revestidas de justificativas práticas.
Dessa obsessão, vieram ao mundo o irrepreensível Crimes e Pecados e o sucesso de bilheteria Ponto Final: Match Point (2005), mas também o problemático O Sonho de Cassandra (2007), um de seus filmes mais frustrantes. Esses títulos, assim como Homem Irracional, têm suas raízes fincadas no clássico Crime e Castigo, romance de Fyodor Dostoiévski, pelo qual o cineasta nutre confessa paixão e que discute justamente o dilema moral de quem mata.
O protagonista de Homem Irracional, o professor de Filosofia Abe (Joaquin Phoenix, em ótima atuação), é um personagem exemplar na filmografia de Allen. Intelectual brilhante, porém também reconhecido no meio acadêmico por sua folha corrida de Don Juan compulsivo, ele se muda para a pequena Newport, na Nova Inglaterra, onde vai lecionar em uma instituição de ensino superior bastante exclusiva.
A chegada de Abe causa frisson, sobretudo entre as mulheres da comunidade universitária. Dizem que “ele vai trazer Viagra ao Departamento de Filosofia” do curso, em referência às pílulas azuis usadas no tratamento de impotência masculina. Ironicamente, faz perto de um ano que o professor não consegue consumar um ato sexual, mas essa limitação não tem origens físicas, e sim existenciais.
Desde que perdeu um amigo jornalista na Guerra do Iraque, e percebeu que sua vida amorosa se transformou em uma sucessão de relacionamentos vazios, Abe afoga suas mágoas no uísque, e nem mesmo a perspectiva de iniciar um novo trabalho o excita.
O protagonista de Homem Irracional, o professor de Filosofia Abe (Joaquin Phoenix, em ótima atuação), é um personagem exemplar na filmografia de Allen.
A única perspectiva que coloca o personagem em movimento, e sobre a qual não cabe aqui entrar em muitos detalhes, é romper a sua náusea existencialista com um ato radical: matar. Essa possibilidade, tratada como uma espécie de jogo desafiador, de quebra absoluta com a rotina, o desperta, o fazendo, inclusive, voltar a ter uma vida sexual ativa, e se apaixonar. Uma pulsão leva a outra, perversamente.
Woody Allen sempre foi um cineasta primordialmente da palavra. Seus filmes resultam do trabalho compulsivo de um roteirista que, segundo seus biógrafos, nunca para de escrever. Portanto, é na condução da trama, construída a partir de uma estrutura narrativa que depende fortemente dos diálogos, quase sempre irônicos e verborrágicos, repleto de referências, que Allen se mostra mais notável como diretor. E na sua sensível, e reconhecida habilidade, na condução dos atores. Homem Irracional não foge a essa regra.
Menos volátil do que Magia ao Luar (2014), seu penúltimo filme, uma comédia romântica esquecível e derivativa para muitos de seus críticos, este novo filme é instigante. Abe, mais um alter ego de Allen, é um ser afogado em palavras e em ideias, nas quais parece não acreditar mais. Para ele, a Filosofia tornou-se uma grande e pretensiosa bobagem, um labirinto dentro do qual se perdeu. E é apenas no reencontro com seus instintos mais básicos, como o de matar, que ele encontra a possibilidade de sobreviver.
Ironicamente, o ato de tirar a vida aqui não tem qualquer razão pessoal: ele não tem qualquer relação com a vítima, a não ser uma antipatia, a quase certeza de que se trata de uma pessoa “ruim”. O que importa, no entanto, é o confronto com o primal, o poder de causar na vida do outro e na dele mesmo uma ruptura irreversível.
Ainda que não tenha o brilho intertextual de Blue Jasmine (2013), que estabelece um notável diálogo com Um Bonde Chamado Desejo, peça teatral de Tennessee Williams, Homem Irracional é um filme inquietante, ainda que, de certa forma, revisite territórios já percorridos pelo cineasta. A artificialidade pomposa dos diálogos por vezes chega a irritar, já que Allen retrata o meio acadêmico e da Filosofia de maneira cáustica, mas esse, também, é um traço recorrente na obra do diretor. Portanto, não há como negar: Homem Irracional é um Woody Allen castiço. Para o bem e para o mal.
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