Ilha do Medo, livro de Dennis Lehane lançado no Brasil pela Companhia das Letras como Paciente 67, na mãos de um cineasta menos talentoso do que Martin Scorsese, poderia ter resultado em um thriller genérico, esquecível. Embora a trama seja envolvente e guarde uma reviravolta até certo ponto surpreendente no seu desfecho, recurso hoje quase banal tanto na literatura quanto no cinema (o cinema de M. Night Shayamalan me vem à mente), é a direção de Scorsese que faz toda a diferença no filme, que completa em 2020 dez anos de seu lançamento e pode ser visto nos canais de streaming Amazon Prime e Netflix.
Leonardo DiCaprio, um dos atores-fetiche do realizador nova-iorquino, ao lado de Robert de Niro, vive com empenho e vontade o papel de um detetive do FBI designado para investigar, na década de 1950, o desaparecimento de uma interna do manicômio judiciário instalado na ilha de Shutter, na costa de Boston. A mulher, condenada por ter afogado seus três filhos, sumiu do presídio como por encanto.
Lá chegando, Edward, personagem de DiCaprio, e seu novo parceiro, Chuck (Mark Ruffalo, de Spotlight), descobrem que há algo de muito suspeito ocorrendo. Além de Rachel, a tal detenta desaparecida, outro interno teria evaporado. Edward, que participou da libertação do campo de concentração de Dachau (Alemanha) durante a Segunda Guerra Mundial, suspeita que o desaparecido seja o homem condenado por ter incendiado o prédio onde morava. Sua esposa (Michelle Williams, de Manchester à Beira-mar), que lhe aparece em sonhos e delírios, morreu vítima do piromaníaco, que desconfia o detetive, talvez esteja sendo usado como cobaia de experimentos médicos como os realizados pelos nazistas.
Ilha do Medo talvez não seja uma obra-prima como Touro Indomável ou Taxi Driver, mas é papa fina, um policial muito acima da média do que vemos no cinema contemporâneo.
Sombrio e claustrofóbico, Ilha do Medo parte de um enredo bem armado já nas páginas do romance de Lehane. Porém, o que o torna uma obra cinematográfica menos corriqueira é a capacidade de Scorsese de trazê-la para o campo das imagens em movimento. Há, ao longo do filme, sequências memoráveis, como a chegada assustadora de Edward e Chuck ao presídio, que remete ao melhor do cinema de suspense e policial dos anos 50 – Alfred Hitchcock, Jules Dassin, Otto Preminguer, Fritz Lang, Samuel Fuller e Nicholas Ray parecem, por diferentes razões, ter sido referências para Scorsese.
A câmera de Robert Richardson, de Hugo, JFK e O Aviador (pelos quais venceu o Oscar de melhor fotografia), alterna panorâmicas, planos abertos e grandiloquentes a closes intimistas, invasivos até, que confundem e enganam o espectador.
Outros momentos brilhantes do longa são os delírios surreais de Edward, sobretudo aquele em que sua mulher se desmaterializa em cinzas nos seus braços. E o que dizer das cenas de Edward e Chuck dentro da ala de segurança máxima do manicômio, que conseguem invadir quando há um colapso do gerador que alimenta a ilha de energia? Genial.
Ilha do Medo talvez não seja uma obra-prima como Touro Indomável ou Taxi Driver, mas é papa fina, um policial muito acima da média do que vemos no cinema contemporâneo.
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