Frank Sheeran, personagem central de O Irlandês, mais recente longa-metragem de Martin Scorsese que acaba estrear no canal de streaming Netflix, é um protagonista exemplar na filmografia do cineasta norte-americano. Assim como o veterano da guerra do Vietnã Travis Bickle, de Taxi Driver (1976), e o pugilista Jake LaMota, de Touro Indomável (1980), papéis também vividos por Robert De Niro, ele é um anti-herói, marginal no mais preciso sentido da expressão.
Mas talvez seja com James Conway, interpretado pelo ator em Os Bons Companheiros (1990), outro clássico do diretor nova-iorquino, que Sheeran guarde mais traços em comum. Ambos são homens que servem o crime organizado comandado pela comunidade ítalo-americana patriarcal e extremamente machista da Costa Leste dos Estados Unidos. Nela, os dois personagens desempenham papéis acessórios, por não compartilharem como seus chefões a etnicidade, a cultura de origem siciliana. São instrumentais.
Sheeran não era para ser mais do que um pintor de paredes, como anunciam letreiros no início do filme, um épico intimista de 3 horas e meia de duração. O destino, no entanto, lhe prega uma peça e faz seu caminho cruzar, em um posto de gasolina, com o de Russell Bufalino (Joe Pesci, outro ator recorrente na obra de Scorsese), que se não chega a ser um capo das dimensões épicas de um Vito Corleone, da saga O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, é um padrino de grande influência na região. O encontro com ele mudará radicalmente a vida do irlandês, que na virada da década de 1960 ganha a vida como motorista de caminhão.
Scorsese não tem pressa, o que o coloca na contramão da maior parte dos filmes hollywoodianos contemporâneos, nos quais tudo ocorre rápido demais.
Sheeran funciona para nós como uma espécie de guia em um mergulho antropológico pelas entranhas do mundo do crime e do poder, no qual ele vai mergulhando aos poucos, sob o comando atento de Buffalino. No excelente roteiro de Steve Zaillian (de A Lista de Schindler), a trama é construída em três tempos entrelaçados.
Em um lar para idosos, o personagem, no fim da vida, relembra seu passado, narrado às vezes para a câmera como um longo flashback. Ao mesmo tempo, vemos Buffalino, Sheeran e suas esposas, no terceiro fio narrativo, em uma viagem de carro de Nova York a Detroit, em 1975. Mais tarde saberemos por que esse percurso é tão importante para o enredo.
Scorsese não tem pressa, o que o coloca na contramão da maior parte dos filmes hollywoodianos contemporâneos, nos quais tudo ocorre rápido demais. Até praticamente a metade da trama, o diretor nos apresenta uma narrativa repleta de detalhes, que ganha contornos quase etnográficos.
Tudo para que que possamos entender a jornada de Sheeran, que de homem de confiança de Buffalino se torna também amigo e cúmplice fundamental de Jimmy Hoffa (Al Pacino, brilhante), todo poderoso líder do sindicato que controlava o transporte sobre rodas nos Estados Unidos da época. O ex-pintor vira uma espécie de servo de dois senhores.
Se o roteiro se encarrega de traçar um panorama histórico dos Estados Unidos entre os anos 60 e 80, insinuando, inclusive, possíveis razões para o assassinato do presidente John F. Kennedy, O Irlandês se ocupa, também da vida privada de Sheeran. Peggy, uma das filhas do protagonista, vivida por Anna Paquin (de O Piano) na fase adulta, é um dos personagens mais fascinantes do filme. Seu silêncio diante do desvario de um mundo masculino cruel, hiper violento, é ensurdecedor. Só não ouve quem não quer.
O exímio trabalho de edição de Thelma Shoonmaker, veterana colaboradora de Scorsese, ajuda o cineasta a construir um filme extraordinário, uma síntese fluida e extremante orgânica da filmografia do diretor, trabalhando com temas caros a ele, como moral católica, culpa, os códigos éticos e comportamentais de um universo que ele conhece muito de perto, e pelo qual nutre assumida obsessão.
É uma obra-prima melancólica, mas também exuberante em sua complexidade. Merece ser vista seja no conforto de sua casa ou nos cinemas, onde está em cartaz em por poucas semanas em poucas telas ao redor do mundo.
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