Imagine uma impossível conversa entre Thomas Hobbes e Martin Scorsese. O local é sua mente que decide, mas o tema é apenas um: a essência humana. Imagine que Hobbes, categoricamente, afirme: “O homem já nasce mau, sem o menor interesse em se tornar um ser sociável. Ele precisa de um Estado forte, autoritário, para que lhe sejam impostas regras.” Scorsese, então, franze sua testa, realçando ainda mais suas grossas sobrancelhas, e apenas rebate: “Será? Deixa eu te mostrar um filme, então.”
Na tela, inicialmente, apenas olhos. Quando um rosto é revelado, uma bela surpresa. Robert De Niro. Em memorável atuação, ele interpreta Travis Bickle, jovem de 26 anos, que, sofrendo de insônia, resolve se tornar taxista em Nova Iorque durante a noite. O filme é Taxi Driver, que narra a trajetória de Travis sob a perspectiva de sua instabilidade psicológica. O maior desafio do personagem de DeNiro é se confrontar consigo mesmo.
Travis Bickle é preconceituoso. O taxista não mede palavras para ofender homossexuais, negros e prostitutas, e coloca todos no mesmo patamar de inferioridade, postura que faz com que Travis não faça distinção de quem entra no seu táxi, pois se sente superior. Ele, inclusive, se refere à chuva como uma forma de “limpar o lixo das ruas à noite”.
Ao não explicar as origens de toda a intolerância de Bickle, o roteiro de Paul Schrader sugere que esta seja a essência do personagem, que Travis sempre foi dessa forma, corroborando com a primeira premissa da filosofia de Thomas Hobbes. Entretanto, a concordância acaba aí, e tanto Schrader quanto Scorsese não medem esforços para deixar isso bem claro.
A primeira refuta a Hobbes vem quando Travis afirma que acredita que deve ser como as outras pessoas, se encaixar. Em outras palavras, seu desejo é de ser sociável. Para isso, decide entrar no comitê eleitoral de Charles Palantine (Leonard Harris), candidato à presidência dos EUA. Travis Bickle é, assumidamente, analfabeto político, logo, sua única motivação neste ambiente é conversar com Betsy (Cybill Shepherd), e convidá-la para um café. A peculiaridade e extrema sinceridade de Travis revelam sua dificuldade de socialização, mas acabam atraindo a moça, que aceita o convite.
Nas andanças de táxi por Nova Iorque, o longa revela sua essência: explicitar a contemplação, por parte de Travis, de sua própria essência falha. Com isso em mente, Scorsese atribui à cor vermelha um sentido de culpa, de pecado, faceta que se tornou marca registrada do cinema do diretor.
Sendo assim, Travis é, a todo momento, impregnado pela cor vermelha. Fachadas de prédios, poltronas do cinema, latas de refrigerante, pacotes de pipoca e chocolate, pilastras do comitê de Palantine, as roupas do taxista e até as de Betsy são pintados de vermelho. Simbolicamente, tudo o que os olhos de Bickle podem enxergar faz com que ele visualize suas próprias falhas.
Entretanto, em meio à imensidão vermelha, Scorsese, em conjunto com a direção de arte de Charles Rosen, faz questão de quase sempre posicionar um detalhe em verde em algum lugar do quadro, seja um letreiro ou até mesmo a luz do sinaleiro. O tom associado à natureza humana serve para lembrar o espectador de que, por mais que Bickle tente se tornar sociável, sua essência má e falha nunca permitirá. Ideia que se confirma em um dos planos mais espetaculares da história do cinema.
Taxi Driver é o estabelecimento definitivo das diretrizes filosóficas de Martin Scorsese.
O segundo encontro entre Travis e Betsy é desastroso – a total desconexão do taxista com a lógica da sociedade o faz levá-la em um cinema pornô -, e, após alguns dias, a tentativa de reconciliação vem por meio de uma ligação de um telefone público.
Travis Bickle é visto utilizando o último aparelho de uma parede com três telefones, e está posicionado à direita da tela, quase saindo do quadro. Isto, por si só, já transmite a ideia de desconforto. Além de estarem em alturas distintas, em posição de “escada”, os telefones são todos diferentes, sendo o primeiro muito antigo, o segundo um pouco mais moderno e o terceiro, utilizado por Travis, praticamente igual aos telefones públicos vistos hoje. Esta lógica associa-se aos estágios da evolução humana, essencialmente o está sendo buscado naquele momento.
Entretanto, existem apenas três aparelhos, e não cinco, como as etapas da evolução. Isto indica que o personagem nunca conseguirá evoluir totalmente, sua essência simplesmente não permite. Em adição, o único telefone que não tem fios conectados à parede é o que Bickle utiliza, simbolicamente excluindo qualquer possibilidade de conexão entre suas atitudes e o mundo, deixando muito claro que ele nunca chegará a lugar nenhum. Tudo isso com Travis Bickle utilizando sua característica jaqueta esverdeada, expondo ainda mais sua natureza.
Não satisfeito, Scorsese faz um travelling lateral com a chamada ainda em andamento, revelando um extenso corredor, muito mais iluminado do que o ambiente visto anteriormente. Este movimento de câmera representa a total desistência em relação a Travis, além de ser o momento que a vergonha alheia sentida torna-se insuportável. A partir daí, a contemplação da culpa torna-se assimilação e, inconscientemente, Bickle percebe que não pode ser salvo de si mesmo e que não há Estado autoritário que possa tirá-lo da ruína.
Isso permite que Scorsese explicite parte de suas visões de mundo a partir do roteiro do filme. O momento de consolidação da base filosófica do filme é quando Wizard (Peter Boyle), também taxista, afirma categoricamente que o homem torna-se seu trabalho, que ele é moldado pela sociedade após ter nascido igual a todos os outros. Pois é, Jean-Jacques Rousseau acabou de entrar na conversa. E para não sair mais.
Já tomado por um desespero retraído, Travis Bickle resolve agir. O taxista compra diversas armas e decide que a “limpeza da sociedade” teria que ser feita com suas próprias mãos. Scorsese rapidamente interfere e desaprova a imposição da moral própria de Bickle, seja enfraquecendo-o ao substituir uma arma real por um gesto com as mãos, seja mostrando-o em um estande de tiro em uma sequência de planos cada vez mais afastados, até que Travis não possa mais ser visto. Este enfraquecimento faz com que o destino de Travis se torne cada vez mais assimilado pelo seu próprio subconsciente, criando ideias inconscientemente autodestrutivas, como apontar a arma para o espelho.
A única atitude moralmente validada de Travis Bickle é a libertação de Iris (Jodie Foster), inserida no mundo da prostituição por Matthew (Harvey Keitel) com apenas 12 anos. A menina é o claro exemplo do personagem que, de acordo com o filme, merece salvação. Isto é, uma pessoa que nasceu totalmente pura e boa, mas que a sociedade corrompeu. Novamente, Scorsese refuta definitivamente as ideias de Hobbes e enaltece Rousseau.
O desfecho do longa traz uma provocativa antítese na qual, após implorar, com um gesto, para que fosse morto, Travis Bickle passa a ser visto como heroi por ter resgatado Iris. É a prova clara de que Bickle tem total consciência de sua essência e sabe que ela não permite a ele nenhum tipo de salvação. O que o resta é continuar contemplando sua culpa atrás do volante de um táxi, como mostra o apoteótico plano final da obra-prima de Scorsese.
Taxi Driver é o estabelecimento definitivo das diretrizes filosóficas de Martin Scorsese. A forma como o cineasta enxerga a essência humana e a sociedade, fortemente influenciada por Jean-Jacques Rousseau, seria ainda retratada em alguns dos filmes mais aclamados do diretor, como Os Bons Companheiros, Cassino e O Lobo de Wall-Street. Esta faceta, em meio a diversas outras particularidades, atribuiu muita personalidade ao cinema de Scorsese, ajudando a consagrá-lo como um dos maiores cineastas de todos os tempos.
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